Democratizar o carnaval | Por Emiliano José

Desde o meu mandato de vereador por Salvador, que participo desse debate. O mundo mudou e o carnaval também. É uma primeira e óbvia constatação. A festa não ficaria imune à evolução do capitalismo brasileiro, às mudanças na própria estrutura econômica de Salvador, às mudanças na produção da cultura. Dito de uma maneira bem ampla, o carnaval está subordinado à lógica da mercadoria, à força avassaladora do mercado em meio às singularidades de nossa vida baiana.

O carnaval baiano transformou-se num vultoso negócio. Em 2007 teria envolvido quase 1 milhão de foliões e movimentado em torno de meio bilhão de reais. É muita gente e muito dinheiro. A maior festa urbana do Brasil. Esse novo modelo firmou-se a partir especialmente da década de 90, conferindo às empresas um papel fundamental. O que resta saber é se uma política cultural do Estado, que necessariamente deve levar em conta o carnaval como uma das históricas e legítimas manifestações culturais do povo baiano, deve ater-se apenas a essa quase catastrófica constatação.

Digo catastrófica porque, na minha avaliação, esse modelo, ao privilegiar o negócio, ao fundar-se quase que exclusivamente no valor-de-troca, necessariamente desenvolve uma lógica elitista, que marginaliza a maior parte da população, que se torna expectadora de uma festa. O povo, que a criou, torna-se um adereço. Sei que o governo atual, de Wagner, já começou fazer a diferença, ao dar prioridade aos blocos afros, que sempre enfrentaram dificuldades anteriormente porque não entravam no jogo nos termos que o mercado exigia. Mas é preciso ir além.

O racismo no carnaval é antigo. Mesmo após a abolição da escravatura, ele persistiu, e muita vezes de modo radical. Entre 1905-1914 proibiram-se manifestações carnavalescas dos afro-brasileiros. Esse modelo atual – do carnaval-negócio – reproduz o racismo, de maneira às vezes grosseira. Os brancos vão dentro das cordas, protegidos pelos cordeiros negros. Triste tenhamos que usar o termo cordeiros para definir os que são pagos precariamente para proteger os brancos, muito deles turistas que sequer consomem em Salvador.

Houve avanços. Houve intervenção de autoridades e as condições de trabalho dos que seguram as cordas melhoraram um pouco. Mas, ainda nessa esteira, a maioria da população, que é negra em Salvador, transformou-se de criadora do carnaval em público de um espetáculo. Do carnaval-participação passamos ao carnaval-show, embora, insista-se, ao pipoca reste pouco espaço até mesmo para a fruição da festa teatralizada.

O que me parece essencial é mudar esse modelo. Encontrar os caminhos para a convivência desse carnaval-negócio com a fundamental participação popular, participação que conferiu ao carnaval de Salvador uma natureza única no Brasil, e que está se perdendo devido à lógica fria do mercado. Até mesmo para o negócio, só para argumentar, é fundamental manter a participação popular, conferir espaços efetivos aos foliões que não podem bancar o dinheiro cobrado pelos blocos empresariais com suas cordas. Eu fico pensando no dia em que o prefeito anunciar o fim das cordas no carnaval baiano. As ruas são do povo como o céu é do avião. Isso não eliminaria o mercado, mas implicaria numa redemocratização do carnaval da Bahia.

Há uma discussão, entre tantas, que, nesse quadro do carnaval-negócio, se impõe: o papel do poder público no financiamento da festa. Feitas as contas, o dinheiro gasto pelos governos estadual e municipal não é pequeno. Só o governo do Estado deverá gastar em torno de R$ 30 milhões com a festa este ano. Se a festa se tornou um território de acumulação privada, com tanta força, é fundamental que se discuta de que modo ela deve ser garantida ou, no mínimo, quais as contrapartidas que o Estado, lato senso, deve exigir para colocar tanto dinheiro.

Penso, assim, que o eixo de toda a discussão deve concentrar-se na democratização da folia, na apropriação do carnaval pelo povo da Bahia, genuíno criador dessa extraordinária manifestação cultural.


Discover more from Jornal Grande Bahia (JGB)

Subscribe to get the latest posts sent to your email.

Facebook
Threads
WhatsApp
Twitter
LinkedIn

Deixe um comentário

Discover more from Jornal Grande Bahia (JGB)

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading

Privacidade e Cookies: O Jornal Grande Bahia usa cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com o uso deles. Para saber mais, inclusive sobre como controlar os cookies, consulte: Política de Cookies.