Um espectro ainda parece rondar a sociedade brasileira: o espectro do Código de Menores, que vigorou entre 1927 e 1990. Naquele estatuto, crianças e adolescentes eram menores, imorais, e suas famílias, promíscuas, vadias, ociosas. Por isso, por essa condição, as famílias que vivessem sob o estigma da situação irregular – e veja que a chamada situação irregular sempre dependia do ponto de vista de quem a classificasse assim – aquelas famílias assim rotuladas não tinham condições de criar os seus filhos. Daí nasceram febens, os internamentos pelo Estado e uma sinuosa, pouco definida política de adoção, que perdura até os dias de hoje.
O caso de Gabriel, filho de Rita, que ocupou as páginas dos jornais de Salvador nos últimos dias, é um exemplo desses absurdos. Como é que a mãe, sem mais nem menos, vê subtraído o direito de criar o seu filho? Curioso, intrigante até, é que os textos jornalísticos são reticentes, ambíguos quanto à condição de Rita. Não é que ela seja mãe de Gabriel, um garoto de 1 ano e nove meses. Não. Ela é definida como mãe biológica. E essa formulação tem um nítido conteúdo desqualificador. Ora, sim senhor. Ela é a mãe de Gabriel, e ponto final. Salvo alguma monstruosidade, que nela não é apontada, ela tem soberanos direitos de criar o seu filho.
Que direito tem alguém, seja por que artifícios, de subtrair à mãe o direito de criar o filho, quanto mais se ela tiver, pela vida que leva, uma boa condição de fazê-lo? Ela tem outros filhos e os cria com carinho e com dignidade. Chega a ser uma afronta, uma crueldade dizer que a avaliação tem que passar pela condição material, como os jornais o disseram, emitindo opinião do advogado da pessoa que ficou até agora com Gabriel.
Os direitos das crianças têm que ser assegurados, nesta ordem, pela família, pela sociedade e pelo Estado, segundo o que estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente, que este ano completa 18 anos. Eu estou intrigado como é que alguém consegue, de uma hora pra outra, a adoção de uma criança que tem mãe conhecida, reconhecidamente trabalhadora.Gabriel tem família, e uma família que luta para cuidar dele. O Ministério Público deu parecer favorável a esse procedimento? Eu chego a descrer disso.
Decididamente, é tudo muito intrigante. Volto a levantar uma dúvida: será que pesa sobre Rita de Cássia Salvador a grave acusação de pobreza? Será que ela não constitui um bom exemplo porque é vendedora ambulante? Será que a dignidade na pobreza não é suficiente para criar bem os filhos? Não o fosse, e a maioria das mães e pais por esse Brasil afora não teria condições de cuidar e educar os seus filhos. Salvo melhor juízo, salvo alguma revelação grave, até agora inexistente, Gabriel, o anjo Gabriel deve voltar aos braços de Rita. Por direito líquido e certo, por justiça, por humanidade, e para corrigir um grave erro cometido.
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