Pelo direito à preguiça | Por Juarez Duarte Bomfim

Juarez Duarte Bomfim.
Juarez Duarte Bomfim.

No seu panfleto “O Direito à Preguiça” (1880), Paul Lafargue – anarquista cubano e genro de Karl Marx – se levanta contra a “escravidão moderna”, manifestado no regime de trabalho fabril, criticando duramente as condições de insalubridade existente na fábrica do século XIX e as longas jornadas de trabalho.

Lafargue adota uma das bandeiras fundamentais do movimento operário naquela fase: a redução da jornada de trabalho. Argumentava-se que a redução da jornada teria o duplo efeito de evitar a superexploração do trabalho e as crises de superprodução, cíclicas no capitalismo concorrencial, de anarquia de produção.

Dessa maneira, em contraposição à bandeira de “direito ao trabalho” que a classe trabalhadora reivindica ainda no século XIX, Lafargue levanta o direito à preguiça.

A dialética entre o direito ao trabalho e o direito ao ócio torna-se um dos temas fundamentais na história das relações de trabalho e do movimento operário. Lafargue cria uma outra ética, a preguiça como valor positivo. E essas idéias, apesar de centenárias, soam atualmente revolucionárias e instigantes, pois, ao longo do século XX, a ideologia “trabalhista” foi hegemônica na sociedade industrial, seja ela burocrática-capitalista ou socialista-burocrática.

O que se disseminou na sociedade industrial foi a ética do trabalho, em expressões como “o trabalho dignifica o homem” ou na música popular: “o homem se humilha se castram seu sonho, seu sonho é sua vida e vida é trabalho, e sem o seu trabalho o homem não tem honra e sem a sua honra se mata se morre…”.

Depois da Revolução Russa em 1917, Lênin e Trotski defenderam a obrigatoriedade do trabalho inscrita na legislação do novo Estado operário, em função das tarefas de construção do socialismo.

Todavia, Lafargue constrói uma nova ética: a ética da preguiça. Para ele, é preciso que “o proletariado pisoteie os preconceitos da moral cristã, econômica e livre-pensadora; é preciso que volte a seus instintos naturais, que proclame os “Direitos à Preguiça”, mil vezes mais nobres e mais sagrados que os tísicos Direitos do Homem, arquitetados pelos advogados metafísicos da revolução burguesa. É preciso que ele se obrigue a não trabalhar mais que três horas por dia, não fazendo mais nada, só festejando, pelo resto do dia e da noite”.

O anarquista cubano reinterpreta a Bíblia em favor de suas teses: “Cristo, em seu discurso sobre a montanha, pregou a preguiça: ‘Olhem os lírios crescendo nos campos, eles não trabalham nem tecem e, no entanto, digo, Salomão, em toda sua glória, nunca esteve tão brilhantemente vestido’”.

Sobre a questão do lazer, de como preencher o tempo livre dos operários, os projetos e utopias têm sido vários. Trotski chegou a retomar o tema da preguiça. Considerava o homem como preguiçoso e tal característica – diferente da indolência parasitária da burguesia – era uma qualidade, embasada numa importante medida sobre o progresso humano. “Pois se o homem não tivesse procurado economizar suas forças, ele não teria propiciado o desenvolvimento da técnica nem a aparição da cultura social”. A preguiça, desse ponto de vista, é uma “força progressiva” e é neste sentido que Labriola pôde representar o homem comunista do futuro como um “feliz e genial preguiçoso”. A utopia marxista de poder caçar pela manhã, pescar à tarde, pastorear à noite, e filosofar depois das refeições, tudo isto a seu bel-prazer.

É a quimera expressa também no cancioneiro popular: “no inverno te proteger, no verão sair pra pescar, no outono te conhecer, primavera poder gostar, no estio me derreter; pra na chuva dançar e andar junto…”

Na obra de Lafargue, questões mais atuais como a indústria cultural e as ideologias próprias à cultura de massas ainda não estavam presentes no horizonte histórico. Ele vislumbrava intermináveis passeios, grandes piqueniques populares regados a bom vinho, comemorações e jogos nos dias de festa, espetáculos, representações teatrais dos grupos amadores de “teatro social” e festivais em benefício dos jornais da imprensa operária. Naquela época, o lazer ainda era organizado pelas próprias associações sindicais e culturais da classe operária. Eram práticas inerentes ao próprio movimento da classe trabalhadora.

Em 1923, Trotski, preocupado com a utilização do tempo livre pela classe operária russa diante da influência da vodka (alcoolismo) e da Igreja, propõe o “cinematógrafo” como nova forma de lazer, de fantasia e de espetáculo, não descartando a função educadora (ideológica) que o cinema poderia desempenhar.

Tempo livre para o lazer, a diversão, o vinho, a dança e a festa; intermináveis passeios, grandes piqueniques, comemorações, espetáculos, festivais e representações teatrais. A emancipação do homem através do prazer e da felicidade, relacionados ao ócio.

Antes da sociedade industrial até os escravos nunca trabalhavam mais de seis horas por dia, em média. Isso foi observado em todos os estudos econômicos sobre a escravidão. É a indústria que vai aumentar enormemente a jornada de trabalho.

O tempo torna-se o grande eixo do ser humano. A divisão parcelar do trabalho e a criação da linha de montagem permitem produzir o dobro de produtos no dobro do tempo, esticando-o para aumentar a quantidade de produtos. E uma empresa se torna mais eficiente por quantos mais produtos ela produza em menos tempo.

O progresso tecnológico, o desenvolvimento urbano, os meios de comunicação de massa, a escolarização universalizada, a globalização… tudo isso determina um novo tipo de sociedade, a sociedade pós-industrial, em que grande parte do trabalho físico, repetitivo, prejudicial, pesado, brutal e o trabalho intelectual repetitivo podem ser delegado às máquinas, que se tornam cada vez mais inteligentes.

A conseqüência dessas transformações é o declínio da importância quantitativa e qualitativa da classe operária, com implicações substanciais para a compreensão das mudanças sociais.

Na sociedade atual, do “fim dos empregos” e “adeus ao trabalho”, o sociólogo italiano Domenico de Masi desenvolveu a tese do ócio criativo, buscando dar um conteúdo moral ao ócio, no sentido de que, se o ócio disponível não for usado para “o bem” (criatividade, inovação, bem-estar…) deixa de ter significado e utilidade.

Na sociedade pós-industrial, a criatividade torna-se mais importante que a produtividade. A vida social deixa de ser centrada na produção de bens materiais, e sim na produção de informações, valores, estética, entretenimento. Cresce a importância de indivíduos e grupos criativos como os esportistas, cientistas, artistas e intelectuais.

A criatividade se nutre de ócio. Para se ter idéias é preciso tempo para introspecção. No caso deste que vos escreve, tempo para introspecção e leitura…

O homem moderno tem muito mais tempo livre do que seus antepassados, e dispõe de mais instrumentos para administrá-lo. Cerca-se de relógios precisos, secretárias eletrônicas que recebem mensagens, e-mails, anda com telefones celulares que permitem economizar tempo, pode ouvir rádio enquanto dirige o carro… Mesmo assim, a sensação de não ter tempo é enorme. Há uma sensação de estar sempre atrasado.

De Masi argumenta a favor da redução da jornada de trabalho. Mais tempo livre pode servir de antídoto ao controle burocrático dentro das organizações. O controle é o reino da burocracia, que gera inúmeras disfunções organizacionais.

Para ele, quanto mais há controles, mais se destrói a motivação. A motivação é o reino da criatividade. A burocracia é o seu grande inimigo. Burocracia significa não ter fantasia, essa manifestação do inconsciente que nutre a criatividade. O ócio, mais tempo livre, deve ser implementado nas organizações para o combate à burocracia.

É muito rica e importante essa discussão para nós, trabalhadores brasileiros. Interessa-nos sobremaneira o direito por mais tempo livre para o ócio criativo, o direito a preguiça.

Lutar por mais tempo livre contra a exploração do trabalho; propugnar por mais tempo livre para nos dedicarmos às nossas famílias, à leitura, a passeios, à prosa & a glosa, ao por do sol e ao nascer da lua, a felicidade e o amor.

Preguiçosamente sentado numa esteira de vime, o poeta Vinicius de Moraes nos extasiou ao cantar a delícia que é ter “um dia pra vadiar” ao “passar uma tarde em Itapuã” – e lá, na Praça Caymmi, sentir preguiça no corpo… É bom!

Assim poderemos seguir a nossa vocação caymmica, macunaímica, do brasileiro, espreguiçarmos numa rede, bocejar e dizer: ai, que preguiça!


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