Faixa de pedestres, refúgio virtual

Dizem ser o futebol uma caixinha de surpresas. A vida, também.
Para não fugir dos cânones consagrados pelas mais reputadas oficinas literárias, vamos localizar a ação no espaço e no tempo. Cabe também informar tratar-se de história real. Em sendo assim, toda semelhança com pessoas reais é absolutamente intencional.
Tudo começou e terminou minutos depois, por volta das 10 horas da manhã de terça-feira, dia 10 de março, no cruzamento das ruas Maranhão e Itacolomy.
Trajava eu imponente terno, por causa de um compromisso social – esses compromissos para os quais a beleza interior perde em importância ante a embalagem.

o cruzamento, havia um fluxo de carros, bem como de pedestres. Imagine, caro leitor, pouco familiarizado com o local, duas fileiras paralelas de carros, descendo a rua Itacolomy, em direção à avenida Higienópolis. Caminhava eu tranquilo e resolvi atravessar, fato comum na vida de qualquer ser humano desejoso de alcançar a calçada oposta. Atravessar, dizem, é uma das formas conhecidas de passar de uma calçada para a outra. Minha intenção estava me levando na mesma direção dos carros, porém no sentido oposto. Eis uma bela ilustração da diferença entre direção e sentido, que ofereço, graciosamente, aos autores de manuais didáticos. Não aos que colocam dois Paraguais no mapa.

Ao abrir o sinal, o motorista da fila da direita – a mais distante de mim – “fechou” o carro da fila da esquerda e, zelando pelo próprio bólido – um Meriva insignificante, antes fosse BMW, pela beleza da coisa – acelerou e fez a conversão. Diria que não se tratou de manobra aplaudida pelo nosso Código de Trânsito, mas trata-se de vulgar mito refiro-me ao Código – assim como a tal invulnerabilidade do pedestre na faixa a ele destinada…
Munido de minha calma proverbial, mesmo tendo intuído as más intenções do carro ou de seu condutor – no caso uma infeliz, minha educação proíbe-me usar outros termos bem mais incisivo – continuei meu atravessar majestático. Se saísse correndo, feito vulgar trombadinha, nada teria ocorrido. Estaria sem assunto e sem dores. Acelerei um pouco, por via das dúvidas. Ela, também, movida por misteriosos desígnios.
Vendo o perigo, esbocei uma corridinha.

Em vão! Troppo tarde, diria Dante! Talvez Pirandello dissesse o mesmo se chamado da dimensão na qual reside para comentar a cena..Too late!
Fui colhido e arremessado para o alto feito vulgar pacote no centro de distribuição dos Correios.
A lei da gravidade fez o resto.
Bati no chão. Minha musculatura perfeita, meus 65 anos (claro, aparento bem menos, não?) e minha caixa torácica levaram a pior. Faltou a voz tranqüilizadora: Ao asfalto voltarás!

Não me lembro muito bem dos detalhes da queda, mas de algo me recordo com exatidão. Veio-me a mente a lembrança do pugilista João Henrique, que por quatro vezes tentou a coroa mundial na sua categoria, perdendo nas quatro oportunidades. Duas vezes de Bruno Arcari, uma, de Nicolino Locce e a quarta, bem, podem procurar no Google! Anos depois, vitimado por um desastre numa batida de ônibus na Dutra, ele ajudou a retirar as vítimas e… pouco depois morreu de hemorragia interna. Embalado pelar recordações pugilisticas, levantei, de pronto, sem esperar que a contagem chegasse a 10, e dirigi-me para a sucessora da Lella Lombardi – aquela da F!.
Ela havia parado, diga-se a bem da verdade. Uma jovem senhora, no esplendor de sua idade indefinida, algo em volta daquela consagrada por Balzac. Fiz uma pergunta idiota, mas considerando o susto pelo qual acabara de passar, mereço alguma indulgência:

– Como pode fazer uma coisa dessas, indaguei com meu fleuma britânico, sempre presente em tais ocasiões..
– Desculpe – viu, viu…. quem disse que não há modos no trânsito? – não o vi. Só faltava ter dito que se tratava de uma tentativa de aumentar a renda per capita do Brasil – iniciativa salutar nesses tempos de marolinha exagerada – através da diminuição do denominador da fração.

Lancei um olhar desolado para meu terno – algo fora de combate – porém a decepção cedeu lugar a uma onda de incontido júbilo. Sim, senti uma imensa satisfação interior: meu regime de emagrecimento surtira efeito. Mesmo às 10 da matina, eu era praticamente invisível.

Juntou-se um bando de curiosos. Algo desapontados com a falta de dramaticidade da cena, afastaram-se logo em seguida. Permaneceram os protagonistas do incidente, bem como a motorista do veículo que levara a tal “fechada”… Um coro de buzinas, vindo de seres igualmente apressados e insensíveis encurtou o diálogo tão rico em plasticidade.

Fiquei com os dados da Senhora M.M – seria senhorita?- e com a promessa de que ao menos os danos materiais seriam cobertos. Não valia a pena esperar sentado – ou deitado – a vinda da Polícia com as chateações inerentes à feitura de um B.O.
Até hoje, decorridos oito dias, tanto a senhora M.M – vamos preservar-lhe o anonimato, por enquanto – quanto o advogado dela, esquivam-se com maestria.
Sobra a pergunta que não quer calar. Qual a possibilidade de tal evento suceder em Paris, Roma, ou Brasília? Onde está a educação no trânsito? Prometi uma pergunta e formulei duas. Peço perdão.

*Por Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, é autor de ´Almanaque Anacrônico`, ´Versos Anacrônicos`, ´Apetite Famélico`, ´Mãos Outonais`, ´Sessão da Tarde`, ´Desespero Provisório` , ´Não basta sonhar` e o recente livro/peça ´Um Triângulo de Bermudas`. (Ed. Totalidade). Confira nas livrarias Cultura (www.livrariacultura.com.br), Saraiva (www.livrariasaraiva.com.br), Laselva (www.laselva.com.br) e Siciliano (www.siciliano.com.br).| E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br


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