Democracia de aparências | Por Dioclécio Campos Júnior

Várias são as utopias que animam o espírito humano. A democracia é uma delas. Viver numa sociedade feita pelo povo, com o povo e para o povo é sonho que ainda embala muitas mentes. Um ideal entranhado em sucessivas gerações de aguerridos militantes, alguns dos quais não hesitaram em dar a vida pela causa.

A bandeira democrática remonta aos primórdios da civilização. Ao longo da história, atraiu filósofos, seduziu guerreiros, sensibilizou sociólogos, inspirou políticos, mobilizou classes sociais. Teoria e prática cresceram com as experiências realizadas. Todas diferentes, embora sob o manto dos mesmos princípios. Com o tempo, a palavra perdeu conteúdo. Restou a forma. Útil para as elites, vazia para as massas. Os grandes desafios permanecem inalterados. As desigualdades persistem. Impedem a ascensão de classes inferiores. Perpetuam injustiças. A sociedade democrática real aparenta ser do povo, mas é contra o povo. Reprime pretensões igualitárias. Inibe qualquer criatividade que ponha em risco os privilégios das minorias dominantes.

O grande pensador inglês Aldous Huxley afirmou que onde houver pessoas comendo menos de 2 mil calorias por dia não se pode falar em democracia. Nada mais coerente. No auge da economia globalizada, há 1 bilhão de seres humanos que passam fome, distribuídos pela maioria dos países. Logo, inexiste democracia na face da Terra. Não passa de mero artifício retórico a impregnar o discurso da mistificação.

O Brasil pretende ser um país de todos. No entanto, 10% da população concentram quase metade da riqueza nacional. Um dado a demonstrar o quanto a utopia democrática está distante do “país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza”. A escravidão foi abolida em 1889. Mas, só a lei foi áurea. O cumprimento da lei foi falso. Folheado a ouro. Feito só para dourar a aparência.

A casa grande e a senzala não desapareceram do cenário brasileiro. Ao contrário, nunca foram tão ostensivas. Os senhores dos escravos de hoje residem nas mansões palacianas de condomínios fechados. Os escravos equilibram-se nos casebres das favelas ou nas minúsculas casas populares, produzidas em série para resolver o problema da moradia. Porém, não são residências nem moradias. São guetos habitacionais tão indignos quanto a antiga senzala. Nos apartamentos de classe alta, versão moderna da casa grande, projeta-se o quarto da empregada doméstica com dimensão humilhante, a materialização arquitetônica das iniquidades históricas. Nas ruas das cidades, as limusines dos senhores do luxo cruzam com as carroças dos catadores de lixo. Na porta das igrejas, cheias de fiéis endinheirados, amontoam-se famílias de gente esfarrapada. Aguardam o término do culto na esperança de migalhas caridosas que lhes atenuem o sofrimento.

As diferenças são brutais. O salário do trabalhador comum, o novo escravo, é de R$ 465, enquanto o de um alto escalão do Poder Judiciário é de R$ 27 mil. O acesso à educação de qualidade reserva-se aos filhos dos poderosos, relegando-se os demais à educação pública desqualificada, sofrível, sem horizonte. A assistência à saúde dos novos escravos é decadente, precária, desprovida de recursos humanos e materiais diferenciados. Já a minoria de privilegiados tem cobertura de planos de saúde, quando não da medicina privada.

O povo labuta no cotidiano de penúrias extremas, enquanto os comandantes usam e abusam do dinheiro público. As crianças pobres arrastam-se numa sobrevivência penosa, cheia de inseguranças, carências diversas, violência, doenças debilitantes, abandonadas à própria sorte ou condenadas à morte. Os filhos dos senhores de escravos da atualidade vivem na abundância, crescem na fartura, evoluem no mundo da fantasia consumista, recebem os estímulos que os fazem desenvolver superioridades intelectuais. As universidades públicas promovem os oriundos da casa grande, que nada pagam pelos estudos. As privadas extorquem os moradores da senzala, que passam pesadas privações para obter um diploma de nível superior que pouco lhes acrescenta em conhecimentos e habilidades, porquanto formados em cursos desqualificados.

O trabalho escravo continua fortemente arraigado no modelo econômico em vigor. Só mudaram as aparências. Os escravos modernos já não são apenas os de origem africana. São os que nascem pobres. Por isso, mantém-se bem atual a letra da canção de César Roldão, cantada por Elis Regina nos anos 1960: “Sapato de pobre é tamanco, a vida não tem solução. Morada de rico é palácio e casa de pobre é barracão”.

Dioclécio Campos Júnior é médico, professor titular da UnB e presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria (dicampos@terra.com.br)

*Por Dioclécio Campos Júnior é médico, professor titular da UnB


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