Fatos, versões e bravatas | Por Pedro Malan

Malan diz ser lamentável o maniqueísmo do falso dilema “nós contra eles”

“Não tenho dúvidas de que o Brasil evoluiu positivamente ao longo dos últimos 15 anos. No governo Fernando Henrique, mudanças que hoje temos de reconhecer como muito favoráveis, tais como a consolidação do sistema financeiro – que se revelou muito mais sólido que o de outros países – ou a Lei de Responsabilidade Fiscal, representaram claros avanços para a economia. Da mesma forma, no governo Lula, conquistas sociais como a significativa elevação do salário mínimo ou a dimensão alcançada pelo Bolsa-Família, bem como a expressiva melhora de emprego formal e do crédito, constituíram exemplos de nosso progresso.” O texto acima é de autoria do atual ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, na apresentação do belo livro Brasil Pós-Crise: Agenda para a Próxima Década, organizado por Fabio Giambiagi e Octavio de Barros.

Na mesma linha, vale lembrar o que escreveu, mais de sete anos atrás, o então coordenador do grupo de transição do já eleito presidente Lula, Antônio Palocci, no seu Relatório Final, apresentado formalmente a Lula e aos ministros já escolhidos, no final de 2002. “A instabilidade atual questiona os próprios avanços que se obtiveram com a estabilidade da moeda (…) e um marco institucional fortalecido pela responsabilidade fiscal. Estes foram progressos a serem creditados em boa parte ao governo que ora se encerra, conquistados com os esforços de todos os brasileiros. Não fazemos tábula rasa dos últimos oito anos, e não partilhamos da visão daqueles que acham que tudo deva ser reinventado.”

Anos mais tarde (2007), em seu livro Sobre Formigas e Cigarras, do qual a citação acima foi extraída, Palocci nota, corretamente, que “os ganhos obtidos pelo Brasil a partir de 2003 se assentaram sobre avanços realizados em governos anteriores, que deram contribuições importantes para a estabilidade da economia (ao longo dos últimos 25 anos) como (…) a criação do Tesouro Nacional e o fim da conta-movimento do Banco do Brasil (…), a abertura da economia, estimulando ganhos de produtividade na economia nacional (…), o lançamento do real (…), a negociação das dívidas dos Estados, a resolução dos problemas dos bancos estaduais (e federais) e a instituição da Lei de Responsabilidade Fiscal. Fazer tábula rasa destas contribuições seria atentar contra a própria história do País”.

O respeito aos fatos, claramente expresso por Bernardo e Palocci, se contasse com o respaldo das vozes mais sensatas de seu partido e do movimento lulista, representaria um avanço considerável em direção a um debate público mais sério e de melhor qualidade sobre o País e seu futuro. Um debate voltado para “o que fazer” com vista a assegurar a gradual consolidação do muito que já alcançamos como país e, principalmente, como – e com que tipo de lideranças – avançar mais, e melhor, no processo de mudança e de continuidade que nos trouxe até aqui.

Para tal seria fundamental evitar o lamentável maniqueísmo expresso no falso dilema do “nós” contra “eles”, em que eles, os outros, seriam toda e qualquer pessoa tida como não entusiasta defensora do lulo-petismo (ou do culto à personalidade de Lula). Sempre definidos de forma variada, conforme a audiência e as conveniências do momento: os ricos, a imprensa, as elites, os que são contra os pobres, os que são contra investir no social, os que se opõem à tentativa de nos transformar num País birracial, os que não querem um País altivo e soberano, os neoliberais, os antidesenvolvimentistas.

Vago, simples e genérico assim. Em suma, uma ressentida e frequentemente raivosa “retórica da divisão”, como se fôssemos um país partido em dois. Uma aposta em decisões tomadas por meio de confrontos de natureza plebiscitária, com jargões, palavras de ordem e a versão oficial adotada como verdade, independentemente da análise de dados e fatos.

A ideia de que no mundo da política o que importa é a versão, e não o fato, tem ampla disseminação entre nós. A aceitação dessa “máxima” tem implicações nada triviais para o debate público, em particular durante períodos eleitorais, nos quais, como nas guerras, a verdade figura sempre entre as primeiras vítimas.

Pois veja o eventual leitor: se o que realmente importa não são tanto os fatos, mas as versões sobre eles, por vezes muito distintas e conflitantes, segue-se que as versões que tendem a predominar – pelo menos no prazo relevante para o calendário eleitoral – são aquelas mais constantemente repetidas, aquelas mais bem financiadas por esquemas profissionais dos departamentos de agitação, propaganda e marquetagem política. Afinal, todos aprenderam com Goebbels que uma versão, se mil vezes repetida com convicção e eloquência, pode acabar assumindo foros de verdade; pelo menos para aqueles – que podem ser maioria – sem muito tempo ou condições de se debruçar sobre as evidências, os fatos e as distintas interpretações possíveis deles. O problema é particularmente preocupante quando as versões “mil vezes repetidas” estão respaldadas, direta ou indiretamente, pela ampla utilização, sem quaisquer peias, de cargos e recursos públicos, em campanhas eleitorais explícitas, iniciadas com anos de antecedência, sob o olhar complacente daqueles que preferem dar menos importância aos fatos e às leis do que às versões e às bravatas.

Há quem diga que tudo isso é apenas efeito do calor da hora, expressão das vastas emoções que fazem parte natural de processos eleitorais em sociedades de massa. Para estes, passadas as eleições, e qualquer que seja o seu resultado, o País continuaria – à nossa pragmática maneira – a avançar em seus complexos processos de continuidade e mudança. Bravatas seriam o que são; bravatas simplesmente, e nada mais. Será?


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