O livro e o tempo | Por Petrônio Souza Gonçalves

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Primeiro o homem aprendeu a ler. A ler as estações do ano, as fases da lua, o tempo da colheita, da pesca, da seca, da chuva. O tempo da estiagem e o tempo da fartura. Migrava de um lado para o outro em busca de abrigo e de alimento. Em bandos, foi se organizando, dentro de uma consciência nômade de vida, de existência. A sua casa era o tempo, tendo como telhado o firmamento.

Depois de muitas observações o homem passou a traduzi-las em conhecimento. De sua relação direta com a natureza, aprendeu a plantar, tendo na agricultura a possibilidade de se fixar. Era o início das comunidades, o princípio da história. Em uma seqüência natural, o homem começou a escrever, a registrar suas experiências, traduzi-las em símbolos e sinais. Cada povo com sua linguagem, cada cultura com sua forma de registrar e contar a sua verdade.

Nasciam os primeiros calendários, os primeiros alfabetos, a primeira consciência de guardar e repassar o ensinamento, de escrever e traduzir as histórias. De lábios a ouvidos, foram passando de mão a mão, tendo pedras, tábuas, couros, papiros como transporte de conteúdos e ensinamentos.

Durante séculos, assim foi sendo compartilhado o conhecimento, de um para outro, em uma ação limitada e restrita, o que possibilitou a dominação de muitos por muito poucos. Quem detinha o conhecimento, detinha o poder, quem sabia ler, escrevia o futuro e determinava o destino de povos inteiros. A igreja sabia bem disso, os castelos também.

Com a criação do livro em série a partir dos linotipos móveis de Gutenberg, a condensação de experiências e ensinamentos passou a ser compartilhada amplamente, como se fosse um patrimônio de todos e não privilégio de poucos.

A tradução da bíblia e sua impressão em grande escala por Martinho Lutero partiu o absolutismo da igreja, dando sinais de um novo tempo com a multiplicação do conhecimento entre a humanidade. Os registros de experiências passou a pertencer ao todo, à espécie humana. Passou a ser repetido e compartilhado, possibilitando ao homem dar um salto na história, calcando as bases da revolução industrial.

É após a criação do livro, do condensamento do pensar e do descobrir, que o homem se tornou um ser tecnológico. Transmitindo conhecimento e novas descobertas e observações de gerações a gerações, inaugurou uma nova fase na cadeia evolutiva humana, saindo do primarismo das ações repetidas, passando ao inusitado de novos e pioneiros experimentos. O homem deixou de aprender no tempo e passou a aprender no espaço. Nunca a espécie humana evoluiu tanto como na era do pós-livro.

Agente de transformação, ora cultuado, ora perseguido, o livro é a representação de um tempo, um símbolo.

Agora, muito tem-se falado na sobrevivência do livro tal como o conhecemos hoje depois do advento dos novos meios de comunicação. Seria sua extinção parte da sua própria evolução? Não podemos esquecer que texto vem de textura, e é na impressão que ele tem sua versão final, sua forma definitiva. Ler é sobretudo sentir o universo lúdico escondido por detrás das palavras, tão abstrato quanto a imaterialidade que cada uma guarda, que cada uma traz em si.

Os jovens, educados sobre a luz translúcida das telas do computador, acham opaco a impressão em branco e preto das páginas dos livros, dando um claro sinal da leitura que lhes apetecem.
Enquanto divagamos sobre o futuro do livro e da imprensa em tempos de virtualização do mundo e das relações humanas, no frio abrigo da tela do computador brinca, despreocupado, o texto que nunca foi imaginado.

*Petrônio Souza Gonçalves é mineiro, jornalista e escritor http://www.petroniosouzagoncalves.blogspot.com


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