Em ‘Diários da Presidência’, ex-presidente Fernando Henrique Cardoso relata intrigas e hesitações no comando do poder

Nas 900 páginas do livro 'Diários da Presidência', FHC relata hesitações do cotidiano, tece comentários sobre o governo e aponta intrigas a seu redor.
Nas 900 páginas do livro 'Diários da Presidência', FHC relata hesitações do cotidiano, tece comentários sobre o governo e aponta intrigas a seu redor.
Nas 900 páginas do livro 'Diários da Presidência', FHC relata hesitações do cotidiano, tece comentários sobre o governo e aponta intrigas a seu redor.
Nas 900 páginas do livro ‘Diários da Presidência’, FHC relata hesitações do cotidiano, tece comentários sobre o governo e aponta intrigas a seu redor.

Durante os dois mandatos como Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso (FHC) manteve o hábito quase semanal de registrar, em um gravador, o dia a dia do poder. Os relatos dos dois primeiros anos conformam quase 90 horas de gravação, que foram decupadas a partir de 44 fitas cassete, e resultaram no primeiro volume da série ‘Diários da Presidência’.

Em pouco mais de 900 páginas, FHC relata o cotidiano da presidência, hesitações, e os julgamentos duros de amigos próximos. Ele tece, também, comentários sobre o governo, reclamações da imprensa e aponta intrigas ao redor do poder.

Lançado pela editora Companhia das Letras, o livro é o primeiro de uma série de quatro volumes bianuais. O primeiro volume ‘Fernando Henrique Cardoso: diários da presidência 1995-1996’ traz textos referentes aos anos de governo de 1995 a 1996. A editora planeja concluir a publicação dos diários em meados de 2017.

Na análise da livraria Folha, os registros vão muito além de uma visão privilegiada da intimidade do poder; são, na verdade, uma poderosa ferramenta para a compreensão do Brasil contemporâneo.

Os áudios foram transcritos por Danielle Ardaillon, curadora do acervo da Fundação Instituto Fernando Henrique Cardoso. Todos os textos foram revistos pelo autor e pela editora.

Nesta semana, a revista Piauí divulgou alguns trechos da obra com exclusividade, publicados na na edição 109 da revista. Entre os temas abordados – além de trivialidades e fatos curiosos – estão os escândalos do Sivam e da Pasta Rosa, a CPI dos Bancos e o massacre de Eldorado dos Carajás.

Confira trechos da obra

TERÇA-FEIRA, 28 DE NOVEMBRO DE 1995_ […] Hoje veio a bancada do PFL de Minas tomar café da manhã comigo. Todos dizem que têm questões menores, que não querem conversar comigo, que eu designe quem tratará do assunto, e eles só querem umas nomeaçõezinhas, uns contratinhos, essas coisas, o beabá dessa política empobrecida.

Mas discutimos os grandes temas. Levantaram as dúvidas gerais, dei uma quase aula sobre a situação do Brasil, foi agradável. Não vai mudar nada enquanto não se fizerem as nomeações que estão desejosos de ter. […]

SÁBADO, 9 DE DEZEMBRO_ […] Tive uma longa conversa com Serra. Aí sim, fomos mais a fundo a respeito da nossa relação. Ele voltou a dizer que eu acho que foi contra o Plano Real, que não foi contra o Real, que ele não acreditava [na possibilidade política de o pôr em prática], eu sei que é isso. Voltei a explicar a ele o porquê de o Malan ser o ministro da Fazenda, Serra concorda comigo que é porque dá a sensação de estabilização. Disse-lhe o que esperava de cada um e que não adianta tentar resolver questões que não têm solução, não posso mexer agora com o Banco Central. […]

SÁBADO, 23 DE MARÇO DE 1996_O dia de ontem foi mais tranquilo, como todas as sextas-feiras. Nadei, como faço às segundas, quartas e sextas para me sentir um pouco melhor.

[…]

Fui a uma solenidade sobre o Dia Mundial da Água. Tomando de empréstimo uma frase de Krause, aproveitei para dizer que amanheci naquele dia com a alma lavada, em alusão às vitórias no Congresso. Fiz um discurso sobre o sentido da democracia no mundo contemporâneo, os desafios da globalização e também sobre a questão do meio ambiente, do desenvolvimento sustentável. Fiz um pouco de teoria política, citei Hobbes, Montesquieu, Rousseau.

De tarde, recebi o governador Eduardo Azeredo e o prefeito Patrus,[1] brinquei com eles que o Patrus me convidou para ir a Belo Horizonte e eu disse: “Uai, só se for em dia que não tenha greve; na última vez era só onda de greve.” Ele é do PT e o pessoal do PT está tornando sua vida insuportável.

Recebi os deputados do Rio de Janeiro, o Dornelles à frente, com o [Odenir] Laprovita Vieira,[2] chefe da igreja do bispo [Edir] Macedo, mais uns dois que não sei quem são, um muito ligado ao esporte.

Na verdade o que eles querem é nomear o Eduardo Cunha diretor comercial da Petrobras! Imagina! O Eduardo Cunha foi presidente da Telerj, nós o tiramos de lá no tempo de Itamar porque ele tinha trapalhadas, ele veio da época do Collor. Eu fiz sentir que conhecia a pessoa e que sabia que havia resistência, que eles estavam atribuindo ao Eduardo Jorge; eu disse que não era ele e que há, sim, problemas com esse nome. Enfim, não cedemos à nomeação.

[…]

Estive com o Richa,[3] passei para vê-lo na casa do Zé Lírio,[4] depois o Richa veio aqui, pedi que viesse. Richa não quer sair do Paraná. Propôs uma coisa que me é simpática, de que discutíssemos a questão do parlamentarismo outra vez. Eu pretendo, em 1997, abrir a questão política e institucional. A mim não me vai nada mal que não se discuta reeleição agora. O que eu queria em 97 é fazer uma reforma política e, francamente, já tenho pensado em repor a questão do parlamentarismo com uma Presidência forte. É muita tarefa, como eu tenho registrado aqui, a de ser ao mesmo tempo chefe de governo e chefe de Estado.

[…]

DOMINGO, 24 DE MARÇO_ […] Agora no fim da noite, encontrei a Dorothea.[5] Estava aflita pelas notícias de que o ministério dela podia ser barganhado com o PPB. Expliquei que não era assim, isso cria um ânimo ruim, desmoraliza as pessoas que estão trabalhando no ministério. É uma coisa lamentável, a gente tem que fazer frente a essas fofocas que saem na imprensa e que levam a situações desagradáveis, de que eu não gosto, de incerteza. […]

QUINTA-FEIRA, 25 DE ABRIL_ Ontem também foi um dia muito difícil. Por quê?

Hoje está claro o que aconteceu no Pará: foi um massacre.[6] Houve um incidente com um grupo de pessoas que ocupou uma estrada, o governador do Pará mandou a polícia local desobstruir essa estrada, e ela cometeu o massacre. Nada a ver diretamente com a reforma agrária. Não obstante, fica parecendo que tudo isso é consequência da falta de reforma agrária. Tudo bem, é normal que assim seja, mas essa também é uma nova política do PT e associados, de acabar jogando a culpa no governo federal, pois a reforma agrária está no plano federal. O que, aliás, é outro erro.

[…]

[…] Recebi o Luiz Carlos Santos, com quem conversei sobre os termos em que ele seria indicado líder do governo. Eu disse: “Olha Luiz Carlos, a minha ideia é essa, então você agora atue junto ao PPB.” Ele conversou com o pessoal do PPB, mas só me trouxe a resposta ontem de manhã. O PPB está com o seguinte plano. Maluf, diz o Luiz Carlos, e eventualmente também o Amin são contrários à participação no governo; Maluf quer passar para a oposição. Um [segundo] grupo, grande, organizado ao redor do Vadão [Gomes],[7] quer o Ministério da Agricultura para fins que só Deus sabe quais, e o Dornelles é a opção mais aceitável.

Parece que o PPB não aceita o Ministério da Reforma Agrária sem o Incra. Luiz Carlos sugeriu que ampliássemos a oferta e incluíssemos o Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo. Isso para mim é dolorido, por causa da Dorothea, que é uma ministra de quem eu gosto, e ela tinha que ser avisada dessa manobra.

Depois de uma reunião com Maurice Strong[8] e as ONGS sobre meio ambiente, recebi o Vicentinho[9] e quatro ou cinco dirigentes da CUT. Conversamos sobre tudo, eu gosto do Vicentinho. [Em seguida] ele até me pediu para fazer a reunião deles na biblioteca, depois que eu fosse embora. Deixei, é coisa só do Brasil! Os dirigentes máximos da CUT se reúnem na biblioteca do Palácio da Alvorada. Eles vieram trazer reivindicações dos grevistas de Brasília, a questão dos sem-terra, e havia uma manifestação, dessa vez parece que grande, aqui em Brasília, porque o momento é tenso por causa dos sem-terra. E tentam aproveitar para ver se fazem algo semelhante a impeachment, sempre a mesma história.

Depois disso, recebi para almoço o Luís Eduardo, o Serra, o Sérgio Motta e o Luiz Carlos Santos. Havia uma resistência do Serra, e minha também, a essa coisa do MICT.[10] Ainda aleguei que o MICT está com negociações importantes de investimentos, é um mau sinal, mas os políticos não pensam dessa maneira, eles pensam no número de votos no Congresso. E eu tenho que fazer as reformas. Essa é a armadilha na qual caímos. Eu, desde o início, alertei todo mundo, não vamos ficar presos só às reformas, senão vamos ficar reféns do Congresso. Não adiantou, a sociedade queria reformas. Agora estão mudando de ideia, já se fala pouco das reformas, mas estamos presos nessa armadilha do Congresso.

Então eu disse: “Está bem, de acordo, desde que primeiro se fale com a Dorothea.”

Fui para o Palácio do Planalto, diretamente para o gabinete do Clóvis, chamei o Eduardo, contei a ele, chamei o Paulo Renato e pedi que falasse com a Dorothea, porque os dois são muito amigos. Paulo Renato telefonou em seguida tentando vê-la, falou com [Enrique] Iglesias[11] para saber se havia uma vaga na Cepal.[12] Existe, de diretor-assistente. Paulo Renato falou com ela, perguntou se estava interessada em ir para o Chile. Ela estava viajando, já a caminho, e ficou de conversar num telefone mais tranquilo com o Paulo Renato. Isso foi feito.

[…]

25 DE ABRIL, MEIA NOITE_ Eu disse que ontem foi um dos dias mais difíceis, e anteontem também, desde que assumi o governo. Hoje foi talvez não o mais difícil, mas o mais duro para mim. Por quê?

Pela manhã recebi o senador Amin, que me veio dizer o resultado da reunião de ontem do PPB. Eles provavelmente vão aceitar, claro, eles queriam um pouco mais de espaço no futuro, um desdobramento, com a Educação, mas enfim. Pediu que eu telefonasse para o Maluf, coisa que fiz. Maluf disse que o partido se sentia honrado de poder colaborar com o governo, grande presidente, não sei o quê, embora ele tenha, ao que consta, na véspera, pedido ao Amin que votassem contra a participação no governo. Até aí tudo bem, tudo normal. Em seguida fui para o Palácio do Planalto.

Despachos usuais de manhã. Recebi uma porção de parlamentares. Tive um almoço com o pessoal do Estado de S. Paulo, o [Aluizio] Maranhão[13] e eu conversamos sobre assuntos gerais, sobre política social, contei um pouco, mas muito pouco, a respeito do ministério, eu não podia dar furo nessa matéria, e depois do almoço voltei ao Planalto. Pela manhã eu tinha assistido a uma solenidade com o Jatene[14] sobre o tema oftalmologia e depois do almoço voltei com toda a tranquilidade para o Planalto, porque imaginei que fosse ser um dia relativamente calmo, como até uma certa hora foi.

Bom, o que aconteceu?

Cheguei ao Planalto, recebi Malan, Clóvis, Pedro Parente,[15] discutimos um pouco sobre salário mínimo, os índices, coisa que vamos discutir com mais profundidade amanhã, sexta-feira. O Malan veio com aquela de que não quer saber do Dornelles, eu expliquei as circunstâncias e tal, e ele disse que a Dorothea estava magoada. Claro, eu sei que ela está magoada, a Ana me contou que foi recebê-la no aeroporto, ela estava muito chocada com o que aconteceu, isso foi na madrugada de ontem.

[…]

Fui à casa da Dorothea. Eu tinha que ir.

Havia muita imprensa na porta, muitas crianças, entrei, estavam ela e uma irmã, eu me emocionei, ela chorou, eu também. Na verdade ela está sendo vítima de uma armadilha da história e eu também. Conversei quase três horas com a Dorothea. Deixei que ela desabafasse, me disse coisas preocupantes. Ela acha que estamos fazendo um pacto com o diabo, que o PPB não vai funcionar, que o [Francisco] Dornelles vai arrebentar o trabalho todo do Ministério de Indústria e Comércio, tem medo da corrupção […] Dorothea é uma pessoa admirável e fui ficando com raiva de mim mesmo. Porque na verdade eu fiz a escolha de Sofia, não tinha jeito, eu sei que não tem jeito, porque ou tem o PPB, ou não passam as reformas, mas justamente em cima da Dorothea é uma coisa muito pesada para ela e para mim […] Eu disse: “Bom, nós somos vítimas de uma proposta que é nossa, a área econômica vive afirmando que sem as reformas o Plano Real não se mantém em pé, como é que nós fazemos?” Ela sabe disso tudo, claro. Vai fazer uma nota dura de despedida, mostrando o que fez, está irritada, com toda a razão, com a baixaria de notinhas na imprensa de hoje, uma coisa nojenta, aparentemente dita pelo Delfim,[16] o Maluf teria criticado pela televisão o comportamento dela como ministra, enfim, uma coisa inaceitável. Eu vou reagir, no momento da posse do Dornelles, em algum momento, se é que se vai chegar até lá, vou reagir pela dignidade da Dorothea e, no fundo, pela minha própria.

Enfim, começo a sentir o travo amargo do poder, no seu aspecto mais podre de toma lá, dá cá, porque é isto: se eu não der algum ministério, o PPB não vota; se eu não puser o Luiz Carlos Santos, o PMDB não cimenta, e muitas vezes – o que Dorothea diz tem razão – fazemos tudo isso e eles não entregam o que prometeram. […]

Sobre a obra

Título: ‘Diários da Presidência 1995-1996’,

Autor: Fernando Henrique Cardoso

Editora: Companhia das Letras

*Com informações da Livraria Folha e Revista Piauí.


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