Os cantores e o público recebem a trágica noticia de que o poeta, letrista, jornalista, ator Torquato Neto “fechou a porta” e “abriu o gás”. Era 10 de novembro de 1972. Noite alegre-triste da memória nacional.
No início dos anos 1970 a MPB — Música Popular Brasileira — tinha certa centralidade no imaginário social do brasileiro médio, urbano, escolarizado, que vivia sob uma feroz Ditadura Militar e rígida censura.
O autoritarismo político era repassado à família e sociedade civil, que se tornavam, também, autoritárias. Alguém já disse que o problema das ditaduras, além do tirano de plantão no seu palácio, é o guarda da esquina, mais perto de nós.
Na música popular o brasileiro com este perfil descrito acima buscava luz para as trevas, inteligência contra a estupidez. Os cantores e compositores dos festivais eram venerados. O cineasta e iconoclasta Glauber Rocha batizou Chico Buarque de “nosso Errol Flynn”, herói dos filmes “capa e espada” hollywoodiano.
O bardo santamarense Caetano Veloso é um dos expoentes deste momento significativo da cultura brasileira. Compositor, cantor, escritor, cineasta, palpiteiro nacional, aquele que tem opinião formada sobre tudo… Caetano é, antes de tudo, autor de lindas músicas e reúne um belo cancioneiro.
A imprensa da época atiçava uma rivalidade, que não existia, entre cantores e movimentos da MPB: tropicália versus Jovem Guarda; Caetano Veloso versus Chico Buarque, estereotipando a Jovem Guarda e Caetano como alienados e Chico Buarque e — paradoxalmente — a Tropicália, como engajados. O cantor baiano, sob vaias, havia provocado:
— É essa a juventude que diz que quer tomar o poder?
Pois os dois, Caetano e Chico, dirimindo dúvidas. fizeram um histórico e icônico show e disco “juntos e ao vivo”, em importante templo da arte brasileira: o Teatro Castro Alves, em Salvador (Bahia). Eu era muito garoto e sem grana, não assisti a tal show…
Durante e após o espetáculo, os cantores e o público recebem a trágica noticia de que o poeta, letrista, jornalista, ator Torquato Neto “fechou a porta” e “abriu o gás”. Era 10 de novembro de 1972. Noite alegre-triste da memória nacional.
Alguns anos depois, Caetano Veloso conta que, em excursão pelo Nordeste brasileiro, passando por Teresina (Piauí) é visitado no hotel pelo sr. Heli Nunes, pai do “menino infeliz” que se matou um dia após completar 28 anos de idade, no banheiro de sua casa, enquanto a sua esposa Ana Maria e o filho Thiago, de dois anos de idade, dormiam. Na “carta-testamento” solicita: “vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar”. Depois disso, a matéria vida, tão fina, esvaiu-se.
Torquato, como muitos suicidas, tinha anunciado a própria morte. Considero a bela e triste canção “Pra dizer adeus”, parceria com Edu Lobo, uma carta-despedida.
Voltando a história, quando vê o Dr. Heli, pai do amigo e parceiro Torquato, o sensível cantor baiano cai no choro, e é consolado pelo pai do suicida. Este o leva para uma visita à sua casa, com inúmeras fotografias do saudoso filho espalhadas pelos cômodos. O anfitrião lhe serve cajuína, e os dois ficam ali, sentados na sala de visitas, se olhando em silêncio, Caetano chorando.
O “homem lindo” vai ao jardim da casa, colhe uma rosa menina e oferece a Caetano.
Ainda em excursão, Caetano pega do violão e nos brinda com esta encantadora e filosófica canção, a seguir:
Existirmos: a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos intacta retina
A cajuína cristalina em Teresina.
(Caetano Veloso, Cajuína)
Caetano Veloso conta a história da música ‘Cajuína’
Cogito
eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível
eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora
eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim
eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.
Torquato Pereira de Araújo Neto (Teresina, 9 de novembro de 1944 — Rio de Janeiro, 10 de novembro de 1972)
*Juarez Duarte Bomfim, sociólogo e mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutor em Geografia Humana pela Universidade de Salamanca, Espanha; e professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).
Existirmos, a que será que se destina? | Por Juarez Duarte Bomfim
Share this:
- Click to print (Opens in new window) Print
- Click to email a link to a friend (Opens in new window) Email
- Click to share on X (Opens in new window) X
- Click to share on LinkedIn (Opens in new window) LinkedIn
- Click to share on Facebook (Opens in new window) Facebook
- Click to share on WhatsApp (Opens in new window) WhatsApp
- Click to share on Telegram (Opens in new window) Telegram
Relacionado
Discover more from Jornal Grande Bahia (JGB)
Subscribe to get the latest posts sent to your email.




