Há 170 anos, Lei de Terras desprezou camponeses e oficializou apoio do Brasil Império aos latifúndios

Há 170 anos, a primeira lei agrária do Brasil independente foi aprovada, estabelecendo as bases legais para a concentração de terras em grandes propriedades, uma característica que persiste até hoje no campo brasileiro.
Há 170 anos, a primeira lei agrária do Brasil independente foi aprovada, estabelecendo as bases legais para a concentração de terras em grandes propriedades, uma característica que persiste até hoje no campo brasileiro.

Em 18 de setembro de 1850, o imperador dom Pedro II sancionou a Lei de Terras, um marco que moldou a estrutura agrária do país. A lei, que regulamentou a posse e comercialização de terras no Brasil, consolidou a formação dos latifúndios em detrimento das pequenas propriedades, uma escolha que teria consequências sociais, econômicas e políticas que se perpetuam até os dias atuais.

Concentração fundiária e impacto no campo brasileiro

A Lei de Terras representou uma mudança significativa na maneira como o Brasil tratava suas áreas rurais. Segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), hoje apenas 0,7% das propriedades rurais no país possuem mais de 2 mil hectares, mas essas ocupam quase 50% do território rural. Ao mesmo tempo, 60% das propriedades têm menos de 25 hectares, mas cobrem apenas 5% da zona rural. Esses dados refletem a histórica concentração fundiária, cujas raízes estão, em grande parte, ligadas a essa legislação de 1850.

Antes de sua aprovação, a ocupação de terras no Brasil era marcada pela informalidade e pela falta de um marco legal claro. A lei veio para suprir essa lacuna, mas seu efeito prático foi impedir o acesso dos camponeses pobres e de ex-escravos às terras, ao exigir a compra das mesmas. Assim, a Lei de Terras favoreceu diretamente os grandes proprietários, que detinham recursos financeiros para adquirir vastas áreas, enquanto os pequenos agricultores e posseiros ficavam sem acesso ao solo, limitando-se ao trabalho assalariado.

Um longo caminho até a aprovação

A tramitação da Lei de Terras no Parlamento brasileiro não foi rápida nem simples. O projeto chegou ao Senado e à Câmara dos Deputados em 1843, e só após sete anos de debates, negociações e reviravoltas, em 1850, alcançou sua versão definitiva. Durante esse período, senadores e deputados, muitos dos quais eram grandes proprietários de terras, defenderam seus interesses no plenário. Diversos discursos proferidos na época, registrados em documentos hoje guardados no Arquivo do Senado, revelam como a elite agrária conduziu o processo.

O senador Costa Ferreira, por exemplo, argumentou contra a ideia de dividir as terras em pequenos lotes. Para ele, tal proposta era inviável, e as grandes propriedades eram as únicas que poderiam prosperar no país. Outros parlamentares, como o senador Bernardo Pereira de Vasconcellos, defendiam que as terras no Brasil estavam sendo “esbanjadas”, uma vez que qualquer pessoa podia invadir terras devolutas e se estabelecer nelas sem qualquer impedimento legal. Esse cenário, para eles, deveria ser corrigido, com a terra sendo reservada para aqueles que pudessem cultivá-la de maneira eficiente, ou seja, os grandes proprietários.

A formação do latifúndio e o impacto social

A concentração fundiária estabelecida pela Lei de Terras teve um efeito profundo na formação da sociedade rural brasileira. Durante o Império, o Brasil era um país agrário, cuja economia dependia fortemente da exportação de café. No entanto, a posse da terra era marcada pela insegurança jurídica e pela desorganização. As sesmarias, grandes propriedades de terra doadas pela Coroa portuguesa, estavam em mãos de poucos, e muitas delas não eram devidamente exploradas.

A Lei de Terras visava organizar essa posse, mas ao estabelecer que a aquisição de terras deveria se dar exclusivamente por meio da compra, excluiu uma grande parcela da população rural, que não possuía recursos para tal. Dessa forma, camponeses, ex-escravos e indígenas foram impedidos de acessar a terra, o que os condenou a uma situação de marginalização econômica e social.

A legislação foi elaborada em um contexto de mudanças profundas. Pouco antes de sua promulgação, o Brasil havia aprovado a Lei Eusébio de Queirós, que proibia o tráfico de escravos africanos. Sem a chegada de novos escravos, os latifundiários começaram a vislumbrar o fim da escravidão e temeram pela falta de mão de obra para seus grandes cafezais. A Lei de Terras foi uma forma de garantir que, ao impedir o acesso dos ex-escravos e dos imigrantes pobres à terra, esses grupos se tornassem uma fonte abundante e barata de trabalho para as grandes propriedades.

Implicações jurídicas e políticas

A Lei de Terras também teve implicações jurídicas importantes. Ao transformar a terra em mercadoria, estabelecendo que a sua aquisição só poderia ocorrer mediante compra, o Brasil começou a seguir um modelo de propriedade que se aproximava das nações capitalistas da época. Até então, a terra no Brasil não era tratada como um bem comercializável, e sua apropriação ocorria majoritariamente por meio de ocupação ou doações da Coroa.

Além disso, a lei não só consolidou o poder dos latifundiários como também reforçou a exclusão dos pequenos posseiros. Embora a legislação previsse uma anistia para aqueles que ocupavam terras públicas antes de sua promulgação, as altas taxas exigidas para a regularização da posse impediram que muitos pequenos agricultores formalizassem a titularidade de suas terras.

Esse processo de exclusão continuou ao longo das décadas seguintes, perpetuando a concentração de terras nas mãos de uma elite agrária. Durante o período da República, a estrutura fundiária pouco mudou, e os latifúndios continuaram a dominar o campo brasileiro.

Consequências duradouras

A concentração fundiária gerada pela Lei de Terras teve impactos duradouros na agricultura e no desenvolvimento econômico do país. A vastidão das grandes propriedades permitiu que os latifundiários adotassem práticas agrícolas extensivas, sem a necessidade de investir em tecnologias ou métodos mais eficientes. Isso contribuiu para o atraso técnico da agricultura brasileira, que só começou a ser superado nas décadas recentes, com a modernização do setor.

Além disso, a exclusão dos pequenos agricultores da posse da terra criou um grande contingente de trabalhadores rurais sem terra, um problema social que persiste até os dias atuais e que está na raiz de muitos conflitos agrários no Brasil. Movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) surgiram como uma resposta à concentração fundiária e à falta de reforma agrária no país.

O historiador Marcio Both, estudioso da Lei de Terras, aponta que a legislação foi um dos principais fatores que consolidaram a concentração de terras no Brasil, um problema que remonta ao período colonial. Para Both, a Lei de Terras foi uma tentativa de adequar o país às exigências do capitalismo global, ao transformar a terra em mercadoria e garantir a sua exploração pelos grandes proprietários.

*Com informações do Senado Federal.

Baixe

Marcio Antônio Both da Silva Lei de Terras de 1850: lições sobre os efeitos e os resultados de não se condenar “uma quinta parte da atual população agrícola”

Proprietário de latifúndio do Nordeste no fim do Século XIX.
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Pintura de Pedro Weingärtner mostra alemães no Sul do Brasil em 1889: latifundiários não queriam que imigrantes europeus tivessem livre acesso à terra.
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Terras cultivadas por posseiro na época do Império.
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Grandes propriedades rurais em São Paulo e Pernambuco no fim do Império.
Em 18 de setembro de 1850, o imperador dom Pedro II assinou a Lei de Terras, por meio da qual o país oficialmente optou por ter a zona rural dividida em latifúndios, e não em pequenas propriedades.
Em 18 de setembro de 1850, o imperador dom Pedro II assinou a Lei de Terras, por meio da qual o país oficialmente optou por ter a zona rural dividida em latifúndios, e não em pequenas propriedades.

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