No artigo ‘Medicina profilática distópica, a causa da doença‘ apareceram nomenclaturas que trazem conceitos que não são frequentemente utilizados na literatura médica, exceto degeneração. Tratando-se de um artigo com a objetivação social, partindo da ideia da complexidade, holismo e intercomunicação, o artigo anterior toma emprestado da sociologia e filosofia nomenclaturas que melhor contemplam o pensamento da temporalidade vivenciada.
O termo utopia proposto inicialmente por Thomas Morus1, emprestado para Medicina, refere-se à construção de uma sociedade ideal, usado em paralelo ao potencial proposto pelos cuidados médicos ideais. A medicina propõe saúde e bom viver, caso todas os conceitos e regras estabelecidos pelas prescrições e orientações médicas sejam seguidos. Teoricamente, dentro desse ato prescritivo estaria inserido as regras do bom viver, da boa relação com o próprio corpo, com as pessoas e com o planeta. Ideologicamente, dentro das maneiras de cuidados orientados estão implícitas a boa saúde e a longevidade, contudo, os contrapontos2 desse pensamento estão relacionados com as intempéries da vida, acontecimentos não previstos, não considerados, os quais pela insuficiência ou não do conhecimento da medicina, somados as desconsiderações do “holos” e do “devir”, traz a ruptura do idealismo da boa saúde e da longevidade. Todavia, a medicina se movimenta entre os extremos, apaziguando, dentro de uma temporalidade os medos humanos, ajudando a conciliação existencial em promessas ideológicas, utópica, que são rompidas nos insucessos das prescrições e culmina com a morte.
Na construção existencial, a medicina é uma das “paredes” que sustenta a vida e, subsequentemente, as crises existenciais. Traz a sensação de amparo e segurança para os seres humanos, não desconsiderando as outros espécimes que são elos dependentes, partindo do conceito de “racionalidade”. Portanto, a utopia sustentada pela medicina, a qual permite a sua existência e o seu financiamento, são abaladas pelas: a) imponderabilidades, ou seja, o que não foi devidamente ponderado, considerado; b) pelo paradoxo da morte que, mesmo com a promessa da saúde prescrita, determina o desfeche existencial, o ponto final de ruptura com a saúde, consequentemente, com a vida. A medicina alimenta o sonho da vida eterna, a descoberta dos processos que impedem o envelhecimento, a luta contra as ações degenerativas dos telômeros, a nanotecnologia, o uso de células embrionárias, a busca pela reanimação cérebro-cortical, a construção de ciborgues, por fim, comenta-se que homem que viverá 500 anos já está vivo entre nós, e, com tudo isso, alimenta a nossa denegação da morte; Entretanto, ainda, tratando-se das questões que abalam a utopia que sustenta a medicina, pontuam-se a c) distopia médica, que é uma completa ruptura, o inverso da utopia, e a degeneração, que é o declínio pela reificação, coisificação das relações humanas.
A distopia faz parte da disartria promovida pelo sistema, dentro de um processo de alienação, tecnificação, que torna as leituras científicas médicas normalizadas dentro de propósitos restritos, com amparos pouco amplos, objetivando interesse diversos, guiados pela temporalidade. No que se refere a distopia, diferentemente da questão utópica, a medicina se ampara no medo. O medo traz consigo oportunidades comerciais, as quais quando não sustentadas pelas questões éticas, tornam-se desastrosas, apelativas, trazendo impactos sociais diversos3, rompendo com o propósito utópico de segurança, deixando os indivíduos ansiosos pelos pensamentos existenciais de finitude, “sem paredes para se sustentar”4. A distopia médica, alimentada pela tecnificação e alienação, vem criando conceitos sociais de beleza, determinando para a sociedade formas pré-fabricadas do belo, renegando a beleza do diferente, promovendo doenças de cunhos sociais e complexos de inferioridade pela não aceitação do “self”, dentro de uma cultura da superficialidade, na qual até o órgão sexual feminino já existe um conceito de beleza a ser seguido5. A distopia está inserida nas distorções das campanhas preventivas6, não suportadas pela ética, no universo das cores criadas para relacionar as diversas morbidades existentes, nos apelos chocantes ao medo de possíveis futuras doenças estatísticas, na mudança de curso existencial da medicina para negação da aceitação, insalubridade e insegurança. Portanto, na distorção do pensamento que conduz a harmonia do corpo e da mente do indivíduo durante o curso existencial, a distopia médica atrelado a medicina, ocupa grande parte da existência do indivíduo e da sociedade ditando as normas de viver, a qual deveria ser apenas um pequeno fragmento da sua existência, presa, considerando a totipotência e a multiplicidade de afazeres existenciais. Quando essas questões distópicas ocupam e destroem o senso existencial, utópico, da medicina, desencadeia o processo degenerativo, a doença da medicina.
A doença da medicina, enfatizando o processo de degeneração, na contramão, faz parte de uma degeneração precoce, iniciada e fomentada pelo senso individualista, excludente e que releva as questões da alteridade. A degeneração precoce está implícita no tão pouco tempo de desenvolvimento da medicina na história, como ciências, na infinita possibilidade dos avanços futuros, nos caminhos tortuosos e desamparados do niilismo, traçando um percurso de coisificação, reificação, amparado pela distopia. As relações humanas e interpessoais são transformadas, gerando a coisificação do ser, fragmentos ou peças que precisam ser trocadas, ajustadas e ou reparadas, dentro de um propósito. A perda do foco utópico é sustentada pela produção médica industrializada, escalonada, pelos anseios comerciais e de consumo, pela desvalorização da classe (como suporte humanitário – existencial), pela má formação e falta da visão holística, pelo afastamento social e a perda da vivência de toda problemática envolvida. Nesse ponto, o paciente torna-se um objeto de interesse, a relação degenera para coisificação, perdendo o seu propósito utópico e fundamental. A base utópica que sempre alimentou a medicina, passa a ter estruturas desumanizada favorecendo a “maquinificação”7,8, substituição das ações humanas por procedimento não humanos, máquinas, sendo atualmente possível consultas com inteligências artificiais9. Não está sendo posto em questão aqui, os avanços tecnológicos, mas sim estão sendo consideradas questões que geram a perda do controle médico, humano, que levam a doença da medicina, processo degenerativo, abalando as bases de sustentação e a sua importância social.
Conclui-se que, o que sustentou e financiou a existência da medicina, foram as ações utópicas, ideológicas, voltadas a saúde e segurança do indivíduo. Quando essas ações se tornam distópicas, pautadas no medo e criação de novas necessidades que impõe ao indivíduo condições que geram novas e mais doenças, a medicina perde o seu elo, o ligame, que a conecta com o propósito fundamental, inicial, entrando em um ciclo de doença e degeneração. A coisificação permitirá a ruptura da identidade que nos torna humano, consequentemente as estruturas que sustentam o ser ficarão abaladas e entrarão no processo de degeneração, a doença da medicina.
*Ângelo Augusto Araújo, MD, MBA, PhD (angeloaugusto@me.com).
Referências
1 – KAUTSKY, Karl; STENNING, Henry James. Thomas More and His Utopia. New York: Russell & Russell, 1959.
2 – Disponível em: https://portal.cfm.org.br/artigos/a-utopia-da-infalibilidade-medica/, acessado em 07/03/2023
3 – TRINDADE, André Sousa. O saber médico na dialética da salvação: Controle e utopia do poder medicalizante. 2016.
4 – SILVA, Junia Paula Saraiva. ” E agora José?” Angústia Criadora na Poética de Carlos Drummond de Andrade. Cadernos CESPUC de Pesquisa Série Ensaios, n. 34, p. 59-67, 2019.
5 – Disponível em: https://www.plasticadosonho.com.br/cirurgia-plastica/ninfoplastia/ninfoplastia-antes-e-depois/, acessado em 07/03/2023
6 – Disponível em: https://jornalgrandebahia.com.br/2023/03/medicina-profilatica-distopica-a-causa-da-doenca-por-angelo-augusto/, disponível em 07/03/2023
7 – PINHEIRO, Cristiano Max Pereira. A MATRIZ. Revista Gestão e Desenvolvimento, v. 1, n. 1, 2004.
8 – FERLA, Luis Antonio Coelho. A utopia da cidade-máquina no cinema do entre-guerras.
9 – SAMORANI, Michele; BLOUNT, Linda Goler. Machine learning and medical appointment scheduling: creating and perpetuating inequalities in access to health care. American journal of public health, v. 110, n. 4, p. 440-441, 2020.
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Medicina profilática distópica, a causa da doença | Por Ângelo Augusto
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