O propósito ideológico da medicina | Por Ângelo Augusto

Na fundação da medicina ocidental, a busca pelo equilíbrio e harmonia visava a saúde do corpo e da mente.
Na fundação da medicina ocidental, a busca pelo equilíbrio e harmonia visava a saúde do corpo e da mente.

Os movimentos que conduzem a vida através do tempo, dentro de uma visão dialética hegeliana (Analítico sintética) (1,2), estão vinculados as diferenças de concepções, propostas por teses e antíteses, que resultarão em uma síntese, apontando um gradiente a favor de uma moral e ética. Na fundação da medicina ocidental, a physis ([a]) representava o equilíbrio e harmonia, o desequilíbrio e a desarmonia eram as causas das doenças. Na busca do equilíbrio, saúde, a medicina tinha uma função dietética (3), síntese, do processo dual. Nas composições desses jogos duais eram construídos propósitos, formados por prescrições místicas, metafísicas, com causas finais, teleológica, as quais resultariam em equilíbrio e harmonia, representando a saúde do corpo e da mente. Construíam-se, assim, ligames sociais que transcenderiam os processos diretamente relacionados ao conhecimento do corpo, e os médicos destacavam-se nas relações sociais.

Na formação do pensamento médico, atual, o raciocínio hipotético dedutivo é extraído a partir de deduções que são aferidas do geral e concluídas em pró do particular. As ciências empíricas, particularmente, o cientificismo médico está fundamentado nas deduções observacionais, ou seja, nas experiências percebidas e transcritas, nas formas neopositivas, material, as quais são descartadas qualquer movimento metafísico, transcendentes, em prol das ciências.

Na visão pós-moderna (4), as consequências das revoluções científicas são pouco ponderadas, não existindo, com isso, um futuro promissor que aponte “sempre” para o melhor. Os pensamentos contemporâneos da Bioética envolvem-se as visões panópticas (5), nas quais tentam relacionar as atitudes humanas e suas consequências.

Partindo da fundamentação do pensamento que estruturam as mentes dos profissionais da saúde, de um modo geral estreitamente cientificista, traz-se a luz uma questão consequencialista em foco: por que usar ferramentas ideológicas, analítico sintética (dialética crítica), para ponderar a relação da medicina com a sociedade? Esse artigo tem por objetivo traçar esclarecimentos a respeito do modelo de análise dos artigos anteriores (6,7), fundamentados ideologicamente, nos quais trazem como ponto de amparo da medicina, a utopia (tese), e desamparo, a distopia (antítese), que poderá culminar em degeneração (síntese).

As deduções dos acontecimentos da vida, pautadas no conhecimento popular, estão ligadas as experiências, desordenadas ou não, seguindo protocolos ou não, mas criando vínculos de identidades. A partir das experiências historicamente vividas obtêm-se inferências do passado, presente e futuro, sendo esse modelo comumente seguido. Cotidianamente, vivemos deduzindo a partir da historicidade conclusões futuras, que nos movem em direção do gradiente decidido. Contudo, os movimentos não parecem ser tão simples (8), pois são compostos pela racionalidade formada pela objetividade, sub e intersubjetividade e outras percepções, conscientes ou inconscientes.

Nos processos de leituras e transcrições para as fundamentações dos referidos artigos, entram como ferramentas e bases de dissertação conceitos ideológicos, os quais, quando utilizados pelo autor, descrevem os princípios do devir. Nas conjecturas das ideias transcritas, o devir era fundamentado em uma visão utópica, tendo como o seu contraponto, a antítese, a percepção distópica, a qual resultaria, na visão do autor, em um processo dialético em degeneração, síntese. As percepções e as consequentes conjecturas, reflexões dialogais, resultaram em sínteses filosóficas que extrapolam metodologicamente os modelos “estreitos”, delimitados, da ciência. Transcendendo, com isso, os limites do cientificismo, a transdisciplinaridade, no objetivo de projetar uma ética consequencialista (9), finalista, caso os processos continuem com os mesmos direcionamentos.

Na proposição dialogal com a sociedade as inferências dos artigos são prescritivas, com as bases fundamentadas, assentadas, nas estruturas principiológicas que compõem o código de ética médico (10). Então, na estrutura que determina a medicina como unidade, o “Modus operandi” do “ser” médico, a moral, o agir médico, é fundamentado nos valores principiológicos que tem como base: a) Beneficência; b) Não maleficência; c) Justiça; e d) Autonomia.

Considerando as estruturas do moral médico, ideal, regidas por questões valorativas, ideológicas, os conceitos que ratificam as formas do agir médico, que identifica a profissão como unidade, estão fundados em uma percepção teleológica, que tem nas bases o pensamento hipocrático e Kantiano, dietético (11). Dentro dessa visão teleológica, finalística, de acordo com os artigos anteriores, estaria a utopia, que movimentou e edificou a medicina desde os primórdios até os tempos atuais. Hodiernamente, algumas das ações médicas vêm transcrevendo novas formas, apontadas como distópicas, que são inversas aos propósitos de sustentação, fruição, para relações humanas, sociais, as quais resultariam em degeneração.

Nas bases que estão vinculados os princípios médicos de ação, existem valores que podem ser medidos pelas ferramentas cientificistas aprendidas, todavia, nem sempre a moral pautada nos princípios, inserida no código de ética a ser seguido, existe uma métrica compreensível (ética consequencialista), o que favorece a extrapolação de percepções e torna-se confusos os campos de ação de alguns dos médicos, cabendo a centralidade e correção de conduta pelos conselhos de ética das entidades médicas, deontologia.

De acordo com a ética Hegeliana (12), que se opõe a moral quando não vinculado aos costumes, as bases deontológicas ficam abaladas, consequentemente, restam as contradições. Hodiernamente, estamos inseridos em uma sociedade secularizada, desmontada das bases dogmáticas, niilista (13), a qual propõe o individualismo e as desconsiderações pelas questões da alteridade, sendo que o outro somente me interessa à medida que possa obter alguma vantagem, pergunta-se: Como poderá, culturalmente, alguns atores da classe médica, em porte dessa tendência que rompem com os princípios éticos, movimentar-se fora das condições postas pelo sistema? Quando se pensa que já existe uma estrutura social corrente que alimenta o pensamento individualista e consumista, somado a tecnificação dos cursos médicos e a falta de estudos relacionado com a formação médico-filosófica, a medicina ruma para a perda do ligame ideológico, ao qual teve seu início, a procura do equilíbrio do corpo e da mente, volta-se para mercantilização, coisificação das relações sociais.

Em uma outra linha de pensamento, não teleológica, alimentado pela ética materialista dialética, a medicina estaria se adequando ao modus operandi do sistema econômico predominante. As ações ditas como “antiéticas” seriam apenas ações transcritas do sistema, os atores envolvidos são apenas figuras representativas, pois já foram treinados a viver em um mundo de repetições, onde o mérito traçado é para quem consegue mais decorar informações e ter ações voltadas a manipulação, “marketing”. A técnica faz parte do jogo, a disputa superficializada propulsada pelo consumismo, sob a mão “invisível” da desumanização e do liberalismo.  Na linha dialética desse pensamento, não fica de fora uma nova síntese, que quando observada dentro de uma percepção dedutiva do geral, particularizando para a classe médica e sociedade, o que se observa é uma guerra de todos contra todos, logicamente, com o interesse particularizado. Nessa óptica, restarão as direções que apontam para o desequilíbrio da classe social, dos médicos, e as rupturas dos princípios éticos, em rumo a doenças, medo e novas necessidades.

Tomando como referência as questões ideológicas que foram plantadas, na conclusão do parágrafo anterior, está inserido a distopia, dentro de uma visão teleológica. Portanto, ideologicamente, a medicina tem o propósito de edificar e estruturar a propagação e sustentação da vida, implicitamente, o bem-estar.  Destacando que foi fundada para trazer harmonia e equilíbrio, physis, tendo como princípios que a sustenta os sentimentos valorativos, que ultrapassam as tecnificações e o cientificismo, deverá superar a mercantilização. Conclui-se que na medicina existem princípios ideológicos de fundação, pautada em questões teleológicas, utópicas, que quando as suas bases fundacionais são rompidas pelas distorções, distopia, destruirá mais uma parede humana de sustentação, degenerará, a doença da medicina.

*Ângelo Augusto Araújo, MD, MBA, PhD (angeloaugusto@me.com).


Referências

1 – ZEN, Eliesér Toretta; SGARBI, Antonio Donizetti. O método dialético na história do pensamento filosófico ocidental. Kínesis-Revista de Estudos dos Pós-Graduandos em Filosofia, v. 10, n. 22, p. 79-96, 2018.

2 – KOCH, Anton Friedrich. Hegel e a consumação da metafísica. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos, v. 9, n. 16, 2012.

3 – MOLINA GONZÁLEZ, Liliana María. Dietética y Moral. Medicina y Filosofía en la antigüedad helenística. Estudios de Filosofía, n. 42, p. 209-250, 2010.

4 – SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna. Estudos avançados, v. 2, p. 46-71, 1988.

5 – MÖLER, Letícia Ludwig. Bioética e direitos humanos: delineando um biodireito mínimo universal. PANOPTICA (em reformulação), v. 4, n. 2, p. 72-93, 2013.

6 – Disponível em: https://jornalgrandebahia.com.br/2023/03/medicina-profilatica-distopica-a-causa-da-doenca-por-angelo-augusto/, acessado em 11/03/2023

7 – Disponível em: https://jornalgrandebahia.com.br/2023/03/a-doenca-da-medicina-utopica-distopica-e-degeneracao-por-angelo-augusto/,  acessado em 11/03/2023

8 – WOHLFART, João Alberto. Método e História em Hegel. Revista Opinião Filosófica, v. 4, n. 1, 2013.

9 – Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Consequencialismo, acessado em 11/03/2023

10 – Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/codigo%20de%20etica%20medica.pdf, acessado em 11/03/2023

11 – Disponível em: https://repositorio.ufrn.br/bitstream/123456789/16456/1/SoniaS.pdf, acessado em 11/03/2023

12 – DAGIOS, Magnus. A PROBLEMÁTICA DA APLICABILIDADE DO IMPERATIVO MORAL KANTIANO E A ALTERNATIVA DO PRINCIPIALISMO. Revista Ágora Filosófica, v. 17, n. 1, p. 202-214, 2017.

13 – MEZZA, Martín. Liberdade absoluta e individualismo na loucura moderna. Estudos de Psicanálise, n. 48, p. 71-78, 2017.

[a]) substância física da qual todas as coisas eram feitas e, também, uma espécie de princípio interno organizador, isto é, a estrutura das coisas.


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