Colisão entre 2 mundos: Os motivos da incompreensão americana sobre a China

Wang Yi, ministro das Relações Exteriores da China, e Antony Blinken, secretário de Estado dos EUA.
Wang Yi, ministro das Relações Exteriores da China, e Antony Blinken, secretário de Estado dos EUA.

A ascensão econômica e política da China durante os anos 2000 colocou fim às discussões em torno do período de “unipolaridade” americana nas relações internacionais. Hoje na qualidade de uma grande potência (em alguns quesitos podendo ser considerada até mesmo uma superpotência), Pequim voltou a atuar de forma propositiva para a construção de uma ordem internacional mais justa e multifacetada.

É dentro desse quadro que o mundo atualmente testemunha uma colisão entre dois mundos, representada pela ascensão chinesa e pelo gradual declínio estadunidense no sistema.

Não por acaso, durante os últimos anos a China acabou se tornando um “alvo” frequente das autoridades em Washington, que passaram a utilizar métodos de pressão política (seja por acusações quanto ao suposto autoritarismo do governo chinês e por questões envolvendo direitos humanos) e, de forma mais direta, pela imposição de “guerras comerciais”.

Sobretudo durante o governo Trump, ficou claro que a administração estadunidense tentou prejudicar a economia chinesa em função de Pequim conduzir uma política externa independente. Ora, qualquer potência importante que ouse conduzir sua política externa de forma independente representa uma ameaça para a Casa Branca.

Para Washington, aliás, a chamada “ameaça chinesa” também tem relação com a perda do predomínio econômico estadunidense no sistema, uma vez que a China é a principal parceira comercial de mais de 120 países no mundo. Não somente isso, a China também ultrapassou os Estados Unidos em termos de tamanho do PIB em paridade de poder de compra.

Não sem razão, em 2017 o mais importante documento estatal da Casa Branca, a Estratégia de Segurança Nacional, nomeou a China como um desafio ao poder, à influência e aos interesses americanos no plano global.

Já no plano político, os Estados Unidos se viram obrigados a lidar – ainda que a contragosto – com uma China cada mais vocal em sua oposição “às abordagens unilaterais” de Washington para a solução de crises internacionais, sobretudo no que se trata de intervenções externas em assuntos domésticos de outros Estados.

Com efeito, essa intromissão desmedida dos americanos em diversas nações do mundo pode ser explicada pelo seu “excepcionalismo missionário”, como expressado pelo influente ex-secretário de Estado, Henry Kissinger.

Em sua famosa obra “Sobre a China”, Kissinger argumenta, por exemplo, que os Estados Unidos se sentem na “obrigação de disseminar seus valores por toda parte do mundo”, acreditando que com isso estariam fazendo um bem para a humanidade.

Não apenas Kissinger, mas também o pensador neorrealista John Mearsheimer defende que, sobretudo com o final da Guerra Fria, os americanos procuraram a todo custo transformar o mundo à sua imagem e semelhança. Tal situação equivale a uma verdadeira espécie de “complexo de Deus” (como inclusive cunhei em artigo recente).

A China, por sua vez, apresenta um desafio a esses pensadores estadunidenses e mesmo ao Ocidente no geral, dado que os chineses não têm esse mesmo impulso expansionista.

Diferentemente do proselitismo de tonalidade protestante (ou messiânico) presente na política externa americana, a China não tem a intenção de exportar seus valores civilizacionais para outros povos, tampouco ensiná-los como devem viver ou se comportar.

Não obstante, a China historicamente nunca se interessou pela conquista militar de regiões distantes, nem esteve implicada em projetos de colonização de outros países, ainda que detivesse a capacidade para tal. Entre os séculos XIII e XV, por exemplo, os chineses possuíam uma frota náutica superior à de qualquer outra potência de seu tempo.

Ainda assim, por não enxergarem nada de muito interessante no “além-mar”, os Imperadores da China abstiveram-se de seguir o caminho da conquista e da exploração, como fizeram as potências europeias a partir do século XVI em diante.

Desde tempos remotos, as elites governantes do país tinham o entendimento de que a China era uma civilização única e que, portanto, o caminho da cooperação comercial e das trocas culturais com outras civilizações era o mais preferível.

Dada essa característica verdadeiramente milenar do pensamento chinês, não surpreende que o país é hoje um dos principais defensores de uma ordem mundial multipolar e multifacetada, ampliando o espaço para que outras sociedades possam exercer o direito de escolher sua própria organização política, econômica e social.

Tudo isso sem se prestar a um suposto “universalismo” dos valores chineses, mas sim afirmando sua especificidade e exigindo o devido respeito à sua soberania política e integridade territorial.

Esse é justamente um mundo que os americanos não querem nem conseguem entender. Um mundo em que a “pluralidade civilizacional” cada vez mais reafirma-se diante dos impulsos uniformizantes emanados de Washington, que nada mais são do que uma manifestação clara de imperialismo/colonialismo cultural disfarçado por trás de slogans bonitos.

Nesse afã por mudar regimes políticos indesejáveis em diversas partes do globo, os Estados Unidos plantam instabilidade para colher o caos, enquanto a China planta estabilidade para colher cooperação, baseada no mútuo benefício. Os chineses, como bem observou Henry Kissinger, enfatizam “a sutileza” para o atendimento de seus objetivos nacionais, sem com isto desconsiderar ou desmerecer os interesses das demais nações com as quais negociam.

Isso porque a mentalidade social mais valorizada na China é a da harmonia do indivíduo com o todo. Não por acaso, um dos slogans políticos adotados por Xi Jinping em seus discursos é do “Futuro Compartilhado para a Humanidade”, dada a interdependência das relações econômicas, sociais e tecnológicas de nossos tempos.

Não se trata de um futuro em que uma potência impõe suas visões sobre as demais, mas sim de um futuro em que todos possam trabalhar em conjunto e respeitar suas diferenças. É nisso que reside a “suprema excelência” chinesa e a incompreensão dos Estados Unidos sobre o país.

E é nisso também que reside a vitória da China sobre o projeto hegemônico americano, sem mesmo precisar combater.

*Com informações da Sputnik.


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