Após 200 anos da Doutrina Monroe, Brasil e América Latina ainda enfrentam desafios à autonomia regional

Analistas apontam que a influência dos Estados Unidos na América Latina persiste, desafiando a autonomia regional.
América Latina segue como área estratégica para os Estados Unidos dois séculos após a Doutrina Monroe, em meio a disputas geopolíticas e questionamentos sobre soberania regional.

Duzentos anos após a proclamação da Doutrina Monroe, analistas avaliam que a influência dos Estados Unidos sobre o Brasil e a América Latina permanece estrutural, impondo limites à autonomia regional mesmo em um cenário internacional marcado pela multipolaridade e pela ascensão de novos atores globais.

Proclamada em 1823, a Doutrina Monroe estabeleceu a América Latina como área de influência prioritária dos Estados Unidos, sob o princípio de rejeição à intervenção europeia no continente. Embora formulada em um contexto histórico específico, a doutrina consolidou-se como pilar estratégico da política externa norte-americana, com impactos que atravessaram dois séculos.

Ao longo desse período, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, a América Latina passou a ocupar papel central na estratégia de poder dos Estados Unidos. Intervenções políticas, econômicas e militares foram justificadas, direta ou indiretamente, pela lógica de preservação da hegemonia regional e de contenção de potências concorrentes.

Mesmo diante das transformações do sistema internacional, analistas apontam que a essência da doutrina permanece ativa, adaptando-se às novas circunstâncias globais sem perder seu objetivo central: garantir a primazia norte-americana no hemisfério ocidental.

América Latina como eixo da hegemonia norte-americana

Para Williams Gonçalves, professor de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), o controle estratégico da América Latina é elemento fundamental para a manutenção dos Estados Unidos como potência hegemônica. Segundo ele, processos de desenvolvimento autônomo e de integração regional foram historicamente sabotados por interesses externos, impedindo o surgimento de polos de poder capazes de rivalizar com Washington.

Gonçalves destaca que essa atuação não se limitou ao campo econômico, estendendo-se às dimensões política e institucional. Golpes de Estado, pressões diplomáticas e condicionantes financeiros fizeram parte de um conjunto de instrumentos utilizados para manter a região sob influência direta.

Essa lógica, segundo o professor, explica a resistência histórica dos Estados Unidos a projetos de integração latino-americana que escapem de sua órbita, mesmo quando apresentados sob a forma de cooperação econômica ou política.

Predominância dos EUA em meio à ascensão da China

Na avaliação de Marcos Cordeiro Pires, professor de Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), a América Latina continua sendo estratégica não apenas para a segurança dos Estados Unidos, mas também para a difusão de seus valores políticos, institucionais e culturais.

Apesar do crescimento expressivo da presença chinesa na região, sobretudo no comércio, em investimentos em infraestrutura e no financiamento de projetos estratégicos, os Estados Unidos mantêm predominância nos campos político, militar e cultural, preservando canais de influência consolidados ao longo do século XX.

Pires observa que essa disputa ocorre em um ambiente mais complexo, no qual países latino-americanos buscam diversificar parcerias internacionais, mas ainda enfrentam limitações estruturais que reduzem sua margem de manobra diplomática.

A Doutrina Monroe no mundo multipolar

Embora frequentemente tratada como uma formulação ultrapassada, a Doutrina Monroe segue operando como referência implícita da política externa norte-americana para a América Latina. A oposição histórica dos Estados Unidos a grandes potências — como a União Soviética no passado e, atualmente, a Rússia e a China — reforça a persistência dessa lógica.

Movimentos como o Não Alinhamento, surgido durante a Guerra Fria, e iniciativas recentes de cooperação Sul-Sul evidenciam tentativas recorrentes de construção de maior autonomia regional. No entanto, essas iniciativas esbarram em pressões externas, assimetrias econômicas e fragilidades institucionais internas.

Duas centenas de anos após sua formulação, a Doutrina Monroe continua a moldar o espaço de ação política e diplomática da América Latina, ainda que sob formas mais sofisticadas e menos explícitas.

Análise crítica: autonomia regional entre permanências e limites

A longevidade da Doutrina Monroe revela não apenas a continuidade da estratégia norte-americana, mas também as dificuldades históricas da América Latina em consolidar projetos duradouros de autonomia e integração. A persistência da influência externa expõe fragilidades estruturais dos Estados nacionais da região.

Ao mesmo tempo, o cenário multipolar abre brechas para maior diversificação de alianças, como demonstram as relações com China, países do BRICS e outras potências emergentes. No entanto, essa abertura não elimina automaticamente os condicionantes históricos impostos pela proximidade geopolítica com os Estados Unidos.

A principal tensão reside no contraste entre discursos de soberania e práticas políticas limitadas, evidenciando que a autonomia regional continua sendo um projeto em disputa, mais aspiracional do que plenamente realizado.

*Com informações da Sputnik News.


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