Medicina: Os “limites” da normalidade | Por Ângelo Augusto

A definição de normalidade na medicina impacta diagnósticos e tratamentos. A análise reflete sobre suas implicações para o indivíduo e a sociedade.

Começar um texto com a intenção de debater os “limites” da normalidade na medicina, colocando aspas e estabelecendo os limites do que se quer questionar e debater, parece uma situação tautológica de elevado grau. Porém, existem implicitamente outras questões: a delimitação do que se quer debater e os significados dos limites.

Inicialmente, declararei o objetivo do texto, que de longe não tem pretensões filosóficas de debater questões profundas como, por exemplo, as expostas por Foucault sobre o Biopoder, assim como adentrar na visão antropológica, cultural, sobre a criação das doenças e os conceitos de normalidade. Pretende-se, portanto, explorar, no âmago da medicina, as suas mais profundas raízes, que fundamentam o pensamento médico até então.

A construção do pensamento médico é fundamentada na experiência e repetição, as quais alimentam as inferências hipotéticas dedutivas, formuladas em combinações de fatos que geram probabilidades, que geram hipóteses dedutivas, que partem do geral para o indivíduo, e que resultam nas indicações diagnósticas e condutas. São, simplesmente, combinações algorítmicas, probabilísticas, inferências médicas, que resultam em protocolos, diretrizes e normas de condutas, que devem ser seguidas, “simplesmente” assim. Percebam aí as aspas outra vez, sinalizando, jocosamente, como se comportam as formações do pensamento médico e não médico. Parece uma tendência à “maquinificação”, um fortalecimento para o futuro controle combinatório das IAs, que por sinal, conseguem combinar muitos mais dados aleatórios. As IAs já estão sendo utilizadas pelas seguradoras de saúde dos países “desenvolvidos”, atenção básica e política de saúde. Esse é outro assunto. Voltando à formação do pensamento médico, partiremos, inicialmente, em direção aos conceitos de normalidade. Dentro de uma visão probabilística, de um modo geral, normalidade é o que é mais comum. Lembrem da “curva sinoidal de Gauss”. Então, dentro do pensamento, o mais comum é o esperado, fora do esperado é o incomum, portanto “anormal” (será?). Transcrevendo isso para medicina, nas formulações estatísticas de diagnósticos e tratamentos, pretende-se que tudo seja enquadrado dentro da curva de normalidade. Fora da normalidade é patológico, de outro modo, ou idiossincrático, ou dentro dos paraefeitos ou comportamentos esperados, menos comuns. Portanto, a pretensão médica é que todas as condutas diagnósticas e de tratamento estejam dentro da visão controlada probabilisticamente, ou seja, que as ações que acontecem, mais comumente ao geral, estejam presentes no indivíduo. Aí é que o médico, não a máquina, se diferencia.

Nas composições excêntricas dos indivíduos, ser único, geneticamente formado e somado às conjugações ambientais, a medicina tenta trazê-lo para dentro da curva de normalidade. Isso torna-se evidente quando indica ações diagnósticas e tratamentos, experimentando-o, experienciando no sentido de conduzi-lo aos limites probabilísticos da curva, pautada por possibilidades do desenvolvimento e/ou agravamento de patologias, doenças. Na maioria das vezes, as condutas diagnósticas partem de amostras temporais, pequenos retratos dos fragmentos temporais do indivíduo: exames, laboratórios, etc., que quando estão dentro dos desvios de tendências indicativos do desenvolvimento de doenças, são experimentados, experienciados, grande laboratório da vida, fadados às probabilidades estatísticas das condutas dos tratamentos. Mas, e os limites dessa normalidade estatística, como são dados?

De longe, o debate aqui não passará pelos interesses políticos e da indústria farmacêutica, assim como a crescente patologização da sociedade pautada no medo e baixa autoestima conduzida pelas más práticas, que por sinal estão em ascendência. Os limites de normalidade tornam-se frágeis quando são vistos pela ótica humana individual, ser único, associado aos conjuntos de sistemas de relações que o indivíduo estabelece durante a vida e com a vida. Porém, a grande massa de médicos precisa pensar em padrões, entender padrões, robotizar condutas. O colesterol tem que estar abaixo de 170 mg/dl, tratar todos os indivíduos de forma igual. Lembrem que a leitura é do geral para todos, mas será que somos tão iguais? Será que somos máquinas?

Na construção dos limites das normalidades, o anormal é o patológico. Lembrem que não se trata de um artigo antropológico com as críticas culturais sobre o conceito de doenças; trata-se de um artigo feito por um médico sobre a medicina. O patológico é o que desarmoniza os sistemas orgânicos. Os sistemas orgânicos desorganizados conduzem às doenças, e as doenças desabilitam o indivíduo, ou conduzem o indivíduo à morte, abreviando a vida. Não é um artigo de política trabalhista, mas como é bom entender a simplicidade da necessidade da harmonização e do equilíbrio das forças internas do organismo. Imaginem que o câncer se trata de um grupamento de ordem individual, que rompe com as regras do equilíbrio e harmonia, em prol dos próprios interesses proliferativos. A utopia da medicina é exatamente entender esses limites de normalidade, controlar a doença e, subsequentemente, a morte, seu paradoxo. Mas será que esses limites de normalidade são tão fáceis assim de serem compreendidos? Existem inúmeras variáveis que são desconsideradas, mais do que trilhões de reações químicas em um único indivíduo a cada momento, principalmente quando a ótica é estreitada para o indivíduo em particular. Porém, podemos advogar a favor da medicina contemporânea: o aumento da longevidade populacional. Dentre os diversos fatores que geraram transformações está a medicina. Podemos também advogar as inúmeras doenças que foram curadas e cronificadas. Mas a questão levantada aqui é sobre os limites da normalidade: a quais propósitos eles atendem? Da população, de um modo geral? Do indivíduo? Da indústria farmacêutica? Não é assunto do tema; a formação de técnicos médicos com baixa criticidade? Não é assunto do texto; a maquinificação da profissão médica e substituição por IAs? Não debaterei; a desumanização da medicina e a patologização da sociedade e busca pelo ganho de capital? Não é esse o tema… A questão é sobre os limites de normalidade adotados pela medicina: quais são as consequências para o ser humano? Saúde ou doença?

Portanto, os limites médicos de normalidade estão cada vez mais estreitos; a sociedade patologizada e vivendo com o medo e a autoestima em baixa; as máquinas fazendo cruzamentos algorítmicos cada vez mais eficientes; a proliferação de farmácias proporcionais à formação médica tecnificada, de baixa qualidade e criticidade (parecendo existir já uma leitura que permitirá a substituição pela máquina). E o indivíduo? Como se encontra o indivíduo, vivenciando o medo, baixa autoestima, pressionado pelas novas necessidades, incrementos de novas tecnologias, novas soluções para problemas que existem e os que ainda não existem, e com pouco acesso aos meios para obtenção do equilíbrio e saúde? Os indivíduos estão lotando os consultórios de psiquiatria, sujeitos às inferências profissionais estreitadas pelos limites de normalidade, as quais conduzem às medicalizações; explosão de vendas de psicotrópicos, lícitos e ilícitos, e assim os ciclos continuam…

*Ângelo Augusto Araújo, MD, MBA, PhD (angeloaugusto@me.com).


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