Coisas transformam-se em mim
É como chuva no mar
Se desmancha assim em
Ondas a me atravessar
Um corpo sopro no ar
Com um nome pra chamar
É só alguém batizar…
(Chuvas no mar – Marisa Monte)
Vivemos em um cenário de crescente competitividade e individualismo, onde jovens enfrentam pressão intensa desde a educação básica. Muitos são levados a buscar destaque nas mídias sociais e na sociedade, cultivando uma ideia de sucesso vinculada à ascensão econômica. Essa cultura exacerba doenças mentais, como ansiedade e depressão, e, tragicamente, eleva as taxas de suicídio entre jovens profissionais (1;2).
Descrevi em artigo passado sobre a fundamentação para o individualismo e a alta competitividade (3), quando as escolas semeiam ideias de individualidade e o sentimento que deve superar o outro. De certo modo, essas ideias já estão plantadas, os recursos tecnológicos vêm massificando essas possibilidades nas últimas décadas: Destacar-se nas mídias sociais como uma figura notável somadas a possibilidade de ascensão econômica tornou-se o auge (4;5).
O sistema de saúde, pressionado pela indústria farmacêutica, muitas vezes prioriza médicos de baixo custo e formação tecnicista, os quais são alvos fáceis para o mercado das faculdades de medicina, que negligencia o desenvolvimento crítico e humanístico: “Médico é como sal: encontra-se em qualquer lugar, é branco e barato.” (6). Essa metáfora resume a percepção utilitarista e desumanizadora que muitas vezes permeia a prática médica no Brasil. Portanto, essa visão desumaniza o profissional e transforma a expansão das faculdades de medicina em um negócio lucrativo, mas eticamente questionável.
O sistema de saúde foi planejado para o truncamento (7). As pressões das indústrias farmacêuticas, percebendo uma constituição tão solidária (8), procuraram por vendedores discricionários, médicos de baixo custos, e encontrou o cenário perfeito: grande desigualdade social, população adoecida e uma estrutura educacional desatualizada e decadente. Por um lado, o “lobby” (Dos lobos) da indústria farmacêutica (9;10) no legislativo e a pressão no executivo foram e são tamanhas, a qual se vendeu a ilusão da expansão dos novos vendedores médicos, dos produtos farmacêuticos, com baixa criticidade, mascarada pela ilusão da inundação do mercado por profissionais de saúde, os quais garantiriam a saúde, assistência a todos, como soluções para os problemas do sistema. Por outro lado, o “lobby” das respectivas escolas de medicina (11;12), as quais algumas delas são negociadas no mercado financeiro (bolsa de valores) (13), como qualquer negócio, prometendo retorno aos investidores, mesmo que o lucro reflita na baixa qualidade de ensino, ficando claro que o que importa é o poder e ganho de capital. Mas, na causa, da causa, da causa a complexidade neocolonial vai além dessa simples argumentação. Porém, onde estavam os conselheiros do CFM e os debates perante a sociedade de um modo geral? Passamos por um conflito ético, não percamos o foco, a divagação ganhará outros rumos, estamos aqui para debater a possibilidade da prova nacional de proficiência médica e as suas implicações éticas.
A Medicina Vai Além dos Livros
Certamente, o conhecimento técnico é essencial para a prática médica, mas a medicina é muito mais do que isso. É uma arte que exige empatia, sensibilidade e a capacidade de entender o ser humano em sua totalidade. Uma prova única, por mais rigorosa que seja, não será capaz de avaliar essas qualidades. O verdadeiro julgamento deve ocorrer ao longo da formação acadêmica, através das observações práticas, avaliações contínuas e o cultivo de abordagens humanística.
A ideia de um exame de proficiência como único critério de validação ignora a complexidade do exercício médico, assim como, desvaloriza o papel das faculdades em formar profissionais completos. Essa ideia de aplicar critérios genéricos para julgar algo tão complexo, quanto a capacidade de um médico, não considera a diversidade de talentos e trajetórias. Em vez de criar um sistema que apenas exclua, precisamos de uma formação médica que integre.
Debatendo medicina, ética, enfocando o princípio da beneficência e não maleficência, fico, realmente, em dúvida sobre a capacitação técnica dos novos profissionais. Sinceramente, não tenho certeza de que os novos médicos terão capacidade de prestar um serviço de qualidade e humanizado a todos os pacientes. Entretanto, descordo, fortemente, que uma prova os certificará da capacidade. Portanto, não creio que o conhecimento médico, desenvolvido durante anos de treinamento, uma prova de proficiência será capaz de julgar se o médico está habilitado ou não a exercer a profissão, pensem na cascata de problemas. Acredito que a medicina vai muito além do conhecimento técnico observado nos livros.
Portanto, concluo que a medicina é uma composição que soma todo o sensório do individuo, a empatia pelo próximo, e as percepções que extrapolam os dados livrescos, as quais, nem sempre, encontraremos nas vidas as repetições, as patologias (doenças) como descritas nos livros. No artigo que comento sobre os limites da normalidade (14), enfatizo a percepção humana, médica, individual, para cada ser. Remonto a estrutura que compõe o pensamento médico e a formação fundamentada no que é mais comum, na qual está sendo enquadrado o indivíduo. Não penso que numa comunicação livresca, com questões de rodapé de páginas, um teste será possível de definir que o individuo é capaz ou não de exercer a profissão, ponderando os cursos de preparações para o teste. Creio que essa observação teria que ser feita no dia a dia das faculdades, no desempenho e autoanálise[1] do individuo perante o ser humano, ao todo. Agora com tantas ilusões e problemas criados, como definir em critérios vagos a capacidade? Será que a solução é criar mais doenças, mais problemas?
O Cenário Atual e os Desafios Futuros
O Brasil tem hoje mais faculdades de medicina do que muitos países desenvolvidos (15), formando anualmente milhares de médicos. A pergunta que surge é: onde será possível alocar tantos profissionais? O mercado de trabalho já apresenta sinais de saturação em algumas regiões e especialidades, agravando a precarização da profissão.
Esse cenário se assemelha a uma economia de guerra, onde a indústria médica, como um “fornecedor de armamentos”, depende da criação de novas demandas – doenças, necessidades farmacêuticas e serviços. Enquanto isso, os médicos tornam-se engrenagens em um sistema focado mais no lucro do que na saúde.
Conclusão
O exame nacional de proficiência médica é uma tentativa de resolver um problema estrutural com uma solução simplista. Embora a intenção de proteger os pacientes seja válida, a proposta ignora questões fundamentais sobre a formação acadêmica, a saúde mental dos profissionais e o mercado saturado.
É preciso repensar o sistema como um todo:
- Avaliações contínuas e práticas durante a formação.
- Regulamentação mais rigorosa na abertura de faculdades.
- Incentivo a currículos que valorizem ética, empatia e habilidades interpessoais.
Só assim poderemos garantir uma medicina que atenda não apenas às necessidades técnicas, mas também à complexidade humana de cada paciente e profissional.
Sinceramente, concluo que a resposta para isso, mesmo pensada sobre a ótica da ética utilitarista, remete a uma situação de guerra, a qual se tem mais doentes, com inúmeras farmácias para fornecer insumos, somados as questões que criam doenças e novas necessidades. Parece ser um cenário perfeito para fornecimento de armamentos, como foi na segunda guerra mundial, ao qual fez uma grande nação crescer, as custas da desorganização, não pertencimento e as desgraças aleias. Pensemos, como reorganizar nossos conceitos e nossa posição social… e com a vida…
“Minha sombra é parte e expoente da sombra da humanidade em si, e quando minha sombra é antissocial, gananciosa, cruel e má, pobre e miserável […], então a reconciliação com ela é a reconciliação com o irmão sombrio da humanidade em si, e ao aceitá-lo e aceitar a mim mesmo nele, eu aceito com ele também toda a parte da humanidade que é ‘meu próximo’ como a minha sombra” (Neumann, 1964 [1949], p. 92) (16).
“Quando criança, perguntava para mim mesmo: Por que tanta desigualdade? Por que não vivemos um mundo melhor? Atualmente, entendo como parte das respostas sendo o individualismo, pessoas erradas em lugares certos, ou pessoas certas em certos lugares, quando o projeto é pessoal. A vaidade, o capital e o poder fascinam, porém, lembremos do legado que deixaremos na nossa partida… e da nossa responsabilidade com a vida”
“É preciso dar um jeito meu amigo” – Erasmo Carlos
*Ângelo Augusto Araújo, MD, MBA, PhD (angeloaugusto@me.com).
Referências
1 – Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/sociedade/comportamento/noticia/2024/02/suicidio-entre-jovens-cresceu-6percent-ao-ano-no-brasil-entre-2011-e-2022.ghtml, acessado em: 04/01/2025.
2 – Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2024/09/risco-de-suicidio-entre-adolescentes-superou-outras-idades-na-pandemia.shtml, acessado em: 04/01/2025.
3 – Disponível em: https://jornalgrandebahia.com.br/2024/12/a-crueldade-do-mercado-medicina-o-curso-mais-importante/, acessado em: 04/01/2025.
4 – Disponível em: https://www.conexasaude.com.br/blog/redes-sociais-saude-mental/, acessado em: 04/01/2025.
5 – Disponível em: https://digitalks.com.br/artigos/o-impacto-economico-das-midias-sociais-como-aproveitar-para-o-seu-negocio/, acessado em: 04/01/2025.
6 – Disponível em: https://ce.cut.org.br/noticias/ciro-comparou-medico-a-sal-0ce9, acessado em: 04/01/2025.
7 – Disponível em: https://abrasco.org.br/sus-falta-planejamento-e-participacao-social-na-administracao-do-orcamento/, acessado em: 04/01/2025.
8 – Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2014-03/relatorio-do-tcu-aponta-falhas-no-sistema-publico-de-saude-brasileiro , acessado em: 04/01/2025.
9 – Disponível em: https://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/05/parlamentares-fazem-lobby-da-industria-na-anvisa.html, acessado em: 04/01/2025.
10 – Disponível em: https://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/05/parlamentares-fazem-lobby-da-industria-na-anvisa.html , acessado em: 04/01/2025.
11 – Disponível em: https://portal.cfm.org.br/noticias/na-camara-dos-deputados-cfm-ressalta-falta-de-infraestrutura-de-escolas-medicas-prejudica-a-formacao-de-futuros-medicos/ ,acessado em: 04/01/2025.
12 – Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1708200309.htm?utm_source=chatgpt.com, acessado em: 04/01/2025.
13 – Disponível em: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/09/04/aluno-de-medicina-vale-r-14-milhao.ghtml , acessado em: 04/01/2025.
14 – Disponível em: https://jornalgrandebahia.com.br/2024/11/medicina-os-limites-da-normalidade-por-angelo-augusto/, acessado em: 04/01/2025.
15 – Disponível em: https://www.apm.org.br/ultimas-noticias/brasil-e-vice-campeao-mundial-em-numero-de-escolas-medicas /, acessado em: 04/01/2025.
16 – KAST, Verena. A sombra em nós: A força vital subversiva. Editora Vozes, 2022
[1] A autocrítica é dolorosa, principalmente quando chega à consciência a nossa responsabilidade pelas atitudes em relação ao outro. “Vê o outro padecer pelas decisões infundamentadas já foram razões para muitos suicídios entre os profissionais de saúde”.
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