A Crise como Forma e o Inconsciente Político da Nação | Por Zilan Costa e Silva

No artigo A Crise como Forma e o Inconsciente Político da Nação, Zilan Costa e Silva propõe uma leitura crítica do Brasil contemporâneo a partir da teoria de Fredric Jameson. Para o autor, a crise atual transcende os campos institucional e econômico, configurando-se como crise narrativa. Ao historicizar as formas simbólicas da política e da cultura, o texto revela um país fragmentado por contradições estruturais e por um inconsciente coletivo que naturaliza a desigualdade, mas também abriga formas de resistência utópica.
Artigo de Zilan Costa e Silva analisa o Brasil como texto em crise, revelando contradições históricas sob a ótica do inconsciente político.

Vivemos tempos de espanto. O presente parece ruir diante de nossos olhos com a naturalidade com que se anuncia a previsão do tempo ou o placar do futebol. A política tornou-se espetáculo, o Estado se transfigura em palco de disputas irreconciliáveis, e a realidade – essa palavra tão cansada – já não se deixa apanhar com facilidade. No Brasil de 2025, o que se vive não é apenas uma crise de governo, de economia, de instituições, mas uma crise narrativa, uma implosão da possibilidade mesma de contar o país a si próprio. É nesse cenário de entropia simbólica que as ideias de Fredric Jameson, sobretudo em The Political Unconscious, emergem como uma lente poderosa para decifrar o nosso agora.

Jameson nos convida a historicizar tudo. Não como um imperativo moral ou uma mania de acadêmico marxista, mas como condição de inteligibilidade da cultura, como chave de leitura do que se escreve, se diz, se filma, se acredita. Todo texto – e aqui o Brasil é um texto em carne viva – é um ato simbólico social, uma tentativa de resolver, deslocar ou mascarar contradições estruturais. E se há algo que não falta ao Brasil é contradição. Não a contraditoriedade do debate civilizado, mas a contradição aguda entre o que se promete e o que se entrega, entre a nação sonhada e o país real, entre a democracia constitucional e a persistência das senzalas, dos jagunços, dos generais.

O Brasil é uma nação marcada pela disjunção entre o tempo e a forma. Carregamos, no corpo institucional, promessas iluministas, mas ainda caminhamos em alpercatas sobre o lodo do escravismo mal resolvido. O inconsciente político brasileiro não é uma camada oculta, a ser desvelada com paciência arqueológica; ele está em toda parte, latejando sob a superfície dos discursos, das decisões, das violências. Como escreve Jameson, todo texto já vem até nós como sempre já lido, atravessado por sedimentações ideológicas que moldam nossas formas de percepção. A cultura, longe de ser o espelho puro de uma identidade nacional, é o campo onde os conflitos sociais são representados, travestidos, reprimidos ou sonhados.

Por isso, a tarefa crítica não é meramente interpretativa, mas política. Jameson propõe que a leitura mais densa de um texto – e aqui podemos pensar no discurso da mídia, na estética do poder, nas reformas legislativas ou nos silêncios do governo – é sempre uma operação de reescrita. Ler é reescrever, reconfigurar, traduzir o simbólico em seus termos materiais. Quando se diz que “o mercado reagiu”, que “a democracia está funcionando” ou que “é preciso pacificar o país”, estamos diante de narrativas saturadas de ideologia, mas também de sintomas: elas dizem o que podem, mas ocultam o que devem. E o que se oculta, no caso brasileiro, é o conflito de classes, é a dominação racializada, é a persistência de uma elite extrativista que jamais aceitou as regras da igualdade republicana.

O bolsonarismo, com toda sua retórica de ódio e messianismo, não surgiu do nada. Ele é uma narrativa simbólica da fratura brasileira: a encarnação de uma utopia reacionária que desejava restaurar uma ordem hierárquica sem o incômodo das mediações democráticas. Sua linguagem não é apenas violenta – ela é estruturada como um romance: há um herói, um inimigo, uma promessa de redenção, uma guerra espiritual e uma pulsão escatológica. Jameson nos ensinaria que esse tipo de narrativa funciona como uma tentativa desesperada de suturar uma sociedade em frangalhos, de oferecer sentido onde só há entropia. Mas, como toda ideologia, ela é parcial, marcada por um fechamento simbólico que reifica a realidade.

O lulismo, por sua vez, embora mais complexo, também pode ser lido como forma simbólica. Ele encarnou a esperança de uma mediação possível entre capital e trabalho, entre favela e asfalto, entre o povo e as instituições. Funcionou, durante algum tempo, como narrativa utópica capaz de reorganizar o espaço político. Mas foi também capturado, esvaziado, neutralizado por dentro. Ao evitar o confronto direto com as estruturas que reproduzem o poder oligárquico, tornou-se vulnerável ao ressentimento social fabricado pelas elites e amplificado pela máquina simbólica da mídia. Sua utopia – e toda utopia, como lembra Jameson, é uma forma de dizer o inominável – foi desmobilizada pelo medo e pela força de um inconsciente reacionário que habita as profundezas da sociedade brasileira.

Ora, toda cultura carrega, como um véu trêmulo, os traços das lutas que a produziram. As novelas, os programas de auditório, os slogans de campanha, os anúncios publicitários, tudo isso compõe um campo de disputa em que as representações da nação são construídas e destruídas. Jameson diz que o inconsciente político se manifesta justamente na forma: é na construção da narrativa, no que ela escolhe contar e no que omite, que se inscreve a luta de classes. No Brasil, essa luta raramente é nomeada; ela aparece como crise, como caos, como “corrupção”, como “violência urbana”. Mas sob esses nomes genéricos pulsa a verdade material de uma sociedade que nunca resolveu sua fundação sobre a violência e o privilégio.

Nas ruas, a guerra se dá em silêncio. O desempregado que entrega comida de bicicleta; a mãe que cruza a cidade para limpar a casa de alguém; o menino negro que corre porque sabe que parar é morrer. Essas são as formas do inconsciente político encarnadas. Não são exceções, mas a própria regra de um país que naturalizou o abismo. Jameson nos diria que essas vidas não são apenas objetos de análise social, mas que elas mesmas constituem formas narrativas, atos simbólicos que desafiam a lógica dominante. Há mais verdade no corpo exausto de uma trabalhadora doméstica do que nos editoriais dos jornais.

Mas há também resistência. Sempre houve. No Brasil de 2025, essa resistência se reinventa nas ocupações de escolas, nas lutas indígenas por território, nas greves silenciosas, nos terreiros perseguidos, nas periferias que inventam cultura enquanto o Estado produz extermínio. Essas práticas são formas culturais insurgentes, micro-narrativas que escapam ao controle da ideologia dominante e que, no vocabulário de Jameson, atualizam a promessa de uma “representação utópica”, isto é, de uma narrativa capaz de imaginar o mundo de outra maneira. A utopia, portanto, não é um delírio; é o nome que damos àquilo que ainda não sabemos nomear.

Neste ponto, é inevitável retornar ao velho problema da forma e da totalidade. Jameson afirma que toda análise marxista genuína é um esforço de totalização, não no sentido de reduzir tudo a um só princípio, mas de compreender o particular como expressão contraditória do todo. O Brasil, como texto, só pode ser lido à luz de sua totalidade concreta: sua história de genocídio indígena, de escravidão, de modernização dependente, de neoliberalismo periférico. Ler o presente é escavar seus estratos, como um arqueólogo que não busca ossos, mas sentidos soterrados.

Ao fim, talvez reste perguntar: que narrativa ainda nos resta? Que história pode ainda nos redimir, nos libertar, nos reunir em torno de um futuro comum? Jameson alerta que toda forma é um modo de contenção, mas também de revelação. A crise que nos atravessa é a forma visível de uma verdade mais profunda: a impossibilidade de continuar fingindo que o Brasil é um país em paz com sua história.

Se, como nos antigos esquemas medievais, pudéssemos reler o Brasil por quatro níveis – o literal de sua miséria, o alegórico de suas promessas, o moral de sua hipocrisia e o anagógico de sua redenção futura – talvez encontrássemos, sob as ruínas simbólicas da pátria, os vestígios de um país que ainda quer ser. Um país que ainda não soube narrar a si mesmo, mas que não desistiu de aprender.

*Zilan Costa e Silva, advogado e professor.


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