A Guerra Que Inventou o Brasil | Por Zilan Costa e Silva

O livro Associação Brasileira de Imprensa – Uma História Não Contada, lançado em 07/03/2024, apresenta uma análise detalhada da eleição da ABI em 2016, marcada por disputas jurídicas e institucionais. A obra, de autoria do advogado Jansen dos Santos Oliveira, revela os bastidores da vitória da chapa Vladimir Herzog e documenta um dos episódios mais complexos da história recente da entidade.
A verdadeira independência do Brasil foi conquistada na Bahia, com sangue, barro e resistência popular, culminando em 2 de Julho de 1823, após o cerco e a expulsão das tropas portuguesas.

Que ninguém se engane: o Brasil não nasceu no Ipiranga. O brado retumbante foi mais sussurro de bastidor do que explosão de pólvora, e a frase do príncipe, tão bem entoada nos livros escolares, mais pareceu um improviso teatral ensaiado na coxia do poder. A verdadeira independência, com cheiro de suor, sangue e lama, aconteceu na Bahia. Ali, onde o Atlântico beija o Recôncavo com uma devoção feroz, travou-se uma guerra. Sim, uma guerra de verdade, daquelas que fazem órfãos, heróis e ruínas. Uma guerra que o restante do país preferiu esquecer, talvez por vergonha de ter sido mais plateia do que combatente.

Quando Dom Pedro gritou às margens do riacho paulista, a Bahia o ignorou com altivez. Salvador era ainda, de fato e de direito, uma praça portuguesa, uma relíquia colonial onde os soldados de Lisboa permaneciam como donos da casa — arrogantes, armados e sem nenhuma pressa de arrumar as malas. O povo baiano, contudo, não partilhava do entusiasmo ibérico. Estava farto de fardas que desdenhavam sua gente, que pilhavam mantimentos, que se impunham pela baioneta e não pelo consentimento. A Bahia era, então, um caldeirão prestes a ferver — e ferveu.

Foi em 1822 que o estopim acendeu. A resistência não se deu como um sobressalto, mas como um movimento gradual e decidido, construído nos sertões, nas vilas, nas cidades do Recôncavo. Cachoeira, São Félix, Santo Amaro e tantas outras pequenas cidades ergueram-se com a dignidade de capitais da rebelião. Foi lá que se formaram os batalhões patriotas, compostos por gente miúda, gente anônima, gente que em geral a história dispensa. Lavradores, artesãos, negros libertos e até escravizados recrutados em troca da liberdade lutaram com a coragem dos desesperados — e dos justos.

Líderes emergiram, não do Olimpo da aristocracia, mas da carne comum. Maria Quitéria, vestida de homem, desafiou não apenas o inimigo, mas também o patriarcado e a lógica da guerra. João das Botas, marinheiro de talento e ousadia, trouxe o Atlântico para o lado da rebelião. O padre Roma pagou com a vida sua fidelidade à causa. O corneteiro Lopes acertou ao errar. Era um Brasil que se inventava na dor e na bravura, um Brasil que o 7 de setembro jamais poderia conter.

Luiz Henrique Dias Tavares, com a sobriedade dos grandes historiadores, deixa claro: a independência do Brasil, na Bahia, não foi um gesto simbólico — foi uma campanha militar extensa, difícil, sangrenta. Os baianos não celebravam uma ruptura, eles a construíram, bala a bala, baioneta a baioneta. Braz do Amaral, escrevendo com a indignação de quem se sentia silenciado, afirmou com todas as letras que a Bahia foi apagada da narrativa nacional de propósito — para dar aos eventos do Sudeste um protagonismo que nunca lhes pertenceu de fato.

E como todo império em formação, o Brasil nascente tentou modelar sua própria lenda. Preferiu o príncipe bonito ao soldado sujo, a frase de efeito ao fuzil enlodado. Mas a história — ah, essa velha inconveniente — teima em resistir às molduras douradas. O cerco de Salvador, que durou quase um ano, não foi uma página de rodapé, mas o clímax de um romance épico. As tropas lusitanas estavam entrincheiradas, o povo faminto, a cidade em colapso. E mesmo assim, os baianos resistiram. Porque sabiam que o inimigo não era só a tropa: era o símbolo da submissão, o eco da colônia que se recusava a morrer.

A guerra culminou em 2 de julho de 1823, quando as últimas tropas portuguesas deixaram Salvador. A cidade respirou aliviada, o Recôncavo explodiu em festa, e o Brasil, enfim, podia dizer-se livre. Mas atenção: livre não por vontade do príncipe, nem por diplomacia. Livre porque o povo da Bahia decidiu que assim seria, e fez valer sua vontade com sangue.

A data, desde então, tornou-se sagrada para os baianos. Mas a sacralidade não impediu o esquecimento. Enquanto o 7 de setembro foi transformado em feriado nacional, com fanfarras escolares e presidentes discursando entre colunas de mármore, o 2 de Julho permaneceu como um culto regional, quase clandestino, uma espécie de revolta silenciosa contra o apagamento. Wlamyra Albuquerque, em sua notável investigação, nos mostra que o povo baiano não aceitou esse silêncio calado. Fez da comemoração um espetáculo de rua, uma carnavalização da história, em que os heróis eram lembrados com afeto, ironia, tambores e fogos de artifício.

As procissões cívicas do 2 de julho misturavam santos, soldados, orixás e poetas. Crianças vestidas de Maria Quitéria, cortejos com nomes como Caboclo e Cabocla, estandartes improvisados com panos de prato e hinos reinventados ao sabor do samba. Era a história, enfim, devolvida ao seu verdadeiro dono: o povo. E como povo que se preza, a Bahia ria da solenidade e zombava da pompa. Comemorava sua independência como convém a quem a conquistou: com orgulho, com festa, com irreverência.

Enquanto isso, o restante do país mantinha-se enredado na narrativa de elite. Brasília, o coração de cimento armado do Brasil moderno, ignorava a Bahia como se ignorasse a própria mãe. Porque aceitar que a independência nasceu em trincheiras de barro e não em palácios é admitir que o Brasil é, sempre foi, uma invenção popular antes de ser um projeto de Estado.

O gesto simbólico de Dom Pedro foi necessário? Talvez. Mas foi um gesto. A Bahia, por outro lado, fez história com ações. E como disse Churchill — ou como diria, se baiano fosse — nunca tantos deveram tanto a tão poucos, e foram tão injustamente esquecidos por todos. O heroísmo do povo da Bahia não cabia na narrativa palaciana de um país que queria se parecer europeu. Era uma independência mestiça, improvisada, popular — e, por isso mesmo, verdadeira.

A guerra da Bahia pela independência foi, paradoxalmente, uma guerra por uma liberdade que ainda não existia. A abolição da escravidão viria só décadas depois, e mesmo assim incompleta. Os pobres continuariam pobres, os brancos continuariam no topo, e o país, apesar da vitória, permaneceria injusto. Mas naquele momento, no inverno de 1823, a Bahia mostrou ao Brasil que o povo pode decidir. Que a liberdade pode vir de baixo. Que a história, apesar dos editores do poder, é feita por quem põe o corpo na linha de frente.

Talvez por isso o 2 de julho incomode tanto. Porque não é um feriado, é um espelho. E poucos gostam do que veem quando se olham nele. Não há lugar para discursos polidos nem para encenações de cavalos brancos. Há suor, barro, feridas. Há mulheres em armas e negros sem correntes. Há o povo.

A independência do Brasil, senhores e senhoras, não se deu ao pé de uma colina em São Paulo, mas sim aos gritos no Pelourinho, ao som dos tambores do Recôncavo e ao sabor da resistência. E se hoje somos uma república, ou algo que ainda tenta sê-lo, devemos começar por agradecer à Bahia — e quem sabe pedir desculpas por tê-la deixado tanto tempo no rodapé dos livros. Afinal, como já se disse com ironia ferina: o 7 de setembro é uma cerimônia, o 2 de Julho, uma vitória.

*Zilan Costa e Silva, advogado e professor.


Discover more from Jornal Grande Bahia (JGB)

Subscribe to get the latest posts sent to your email.

Facebook
Threads
WhatsApp
Twitter
LinkedIn

Deixe um comentário

Discover more from Jornal Grande Bahia (JGB)

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading

Privacidade e Cookies: O Jornal Grande Bahia usa cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com o uso deles. Para saber mais, inclusive sobre como controlar os cookies, consulte: Política de Cookies.