Que ninguém se engane: o Brasil não nasceu no Ipiranga. O brado retumbante foi mais sussurro de bastidor do que explosão de pólvora, e a frase do príncipe, tão bem entoada nos livros escolares, mais pareceu um improviso teatral ensaiado na coxia do poder. A verdadeira independência, com cheiro de suor, sangue e lama, aconteceu na Bahia. Ali, onde o Atlântico beija o Recôncavo com uma devoção feroz, travou-se uma guerra. Sim, uma guerra de verdade, daquelas que fazem órfãos, heróis e ruínas. Uma guerra que o restante do país preferiu esquecer, talvez por vergonha de ter sido mais plateia do que combatente.
Quando Dom Pedro gritou às margens do riacho paulista, a Bahia o ignorou com altivez. Salvador era ainda, de fato e de direito, uma praça portuguesa, uma relíquia colonial onde os soldados de Lisboa permaneciam como donos da casa — arrogantes, armados e sem nenhuma pressa de arrumar as malas. O povo baiano, contudo, não partilhava do entusiasmo ibérico. Estava farto de fardas que desdenhavam sua gente, que pilhavam mantimentos, que se impunham pela baioneta e não pelo consentimento. A Bahia era, então, um caldeirão prestes a ferver — e ferveu.
Foi em 1822 que o estopim acendeu. A resistência não se deu como um sobressalto, mas como um movimento gradual e decidido, construído nos sertões, nas vilas, nas cidades do Recôncavo. Cachoeira, São Félix, Santo Amaro e tantas outras pequenas cidades ergueram-se com a dignidade de capitais da rebelião. Foi lá que se formaram os batalhões patriotas, compostos por gente miúda, gente anônima, gente que em geral a história dispensa. Lavradores, artesãos, negros libertos e até escravizados recrutados em troca da liberdade lutaram com a coragem dos desesperados — e dos justos.
Líderes emergiram, não do Olimpo da aristocracia, mas da carne comum. Maria Quitéria, vestida de homem, desafiou não apenas o inimigo, mas também o patriarcado e a lógica da guerra. João das Botas, marinheiro de talento e ousadia, trouxe o Atlântico para o lado da rebelião. O padre Roma pagou com a vida sua fidelidade à causa. O corneteiro Lopes acertou ao errar. Era um Brasil que se inventava na dor e na bravura, um Brasil que o 7 de setembro jamais poderia conter.
Luiz Henrique Dias Tavares, com a sobriedade dos grandes historiadores, deixa claro: a independência do Brasil, na Bahia, não foi um gesto simbólico — foi uma campanha militar extensa, difícil, sangrenta. Os baianos não celebravam uma ruptura, eles a construíram, bala a bala, baioneta a baioneta. Braz do Amaral, escrevendo com a indignação de quem se sentia silenciado, afirmou com todas as letras que a Bahia foi apagada da narrativa nacional de propósito — para dar aos eventos do Sudeste um protagonismo que nunca lhes pertenceu de fato.
E como todo império em formação, o Brasil nascente tentou modelar sua própria lenda. Preferiu o príncipe bonito ao soldado sujo, a frase de efeito ao fuzil enlodado. Mas a história — ah, essa velha inconveniente — teima em resistir às molduras douradas. O cerco de Salvador, que durou quase um ano, não foi uma página de rodapé, mas o clímax de um romance épico. As tropas lusitanas estavam entrincheiradas, o povo faminto, a cidade em colapso. E mesmo assim, os baianos resistiram. Porque sabiam que o inimigo não era só a tropa: era o símbolo da submissão, o eco da colônia que se recusava a morrer.
A guerra culminou em 2 de julho de 1823, quando as últimas tropas portuguesas deixaram Salvador. A cidade respirou aliviada, o Recôncavo explodiu em festa, e o Brasil, enfim, podia dizer-se livre. Mas atenção: livre não por vontade do príncipe, nem por diplomacia. Livre porque o povo da Bahia decidiu que assim seria, e fez valer sua vontade com sangue.
A data, desde então, tornou-se sagrada para os baianos. Mas a sacralidade não impediu o esquecimento. Enquanto o 7 de setembro foi transformado em feriado nacional, com fanfarras escolares e presidentes discursando entre colunas de mármore, o 2 de Julho permaneceu como um culto regional, quase clandestino, uma espécie de revolta silenciosa contra o apagamento. Wlamyra Albuquerque, em sua notável investigação, nos mostra que o povo baiano não aceitou esse silêncio calado. Fez da comemoração um espetáculo de rua, uma carnavalização da história, em que os heróis eram lembrados com afeto, ironia, tambores e fogos de artifício.
As procissões cívicas do 2 de julho misturavam santos, soldados, orixás e poetas. Crianças vestidas de Maria Quitéria, cortejos com nomes como Caboclo e Cabocla, estandartes improvisados com panos de prato e hinos reinventados ao sabor do samba. Era a história, enfim, devolvida ao seu verdadeiro dono: o povo. E como povo que se preza, a Bahia ria da solenidade e zombava da pompa. Comemorava sua independência como convém a quem a conquistou: com orgulho, com festa, com irreverência.
Enquanto isso, o restante do país mantinha-se enredado na narrativa de elite. Brasília, o coração de cimento armado do Brasil moderno, ignorava a Bahia como se ignorasse a própria mãe. Porque aceitar que a independência nasceu em trincheiras de barro e não em palácios é admitir que o Brasil é, sempre foi, uma invenção popular antes de ser um projeto de Estado.
O gesto simbólico de Dom Pedro foi necessário? Talvez. Mas foi um gesto. A Bahia, por outro lado, fez história com ações. E como disse Churchill — ou como diria, se baiano fosse — nunca tantos deveram tanto a tão poucos, e foram tão injustamente esquecidos por todos. O heroísmo do povo da Bahia não cabia na narrativa palaciana de um país que queria se parecer europeu. Era uma independência mestiça, improvisada, popular — e, por isso mesmo, verdadeira.
A guerra da Bahia pela independência foi, paradoxalmente, uma guerra por uma liberdade que ainda não existia. A abolição da escravidão viria só décadas depois, e mesmo assim incompleta. Os pobres continuariam pobres, os brancos continuariam no topo, e o país, apesar da vitória, permaneceria injusto. Mas naquele momento, no inverno de 1823, a Bahia mostrou ao Brasil que o povo pode decidir. Que a liberdade pode vir de baixo. Que a história, apesar dos editores do poder, é feita por quem põe o corpo na linha de frente.
Talvez por isso o 2 de julho incomode tanto. Porque não é um feriado, é um espelho. E poucos gostam do que veem quando se olham nele. Não há lugar para discursos polidos nem para encenações de cavalos brancos. Há suor, barro, feridas. Há mulheres em armas e negros sem correntes. Há o povo.
A independência do Brasil, senhores e senhoras, não se deu ao pé de uma colina em São Paulo, mas sim aos gritos no Pelourinho, ao som dos tambores do Recôncavo e ao sabor da resistência. E se hoje somos uma república, ou algo que ainda tenta sê-lo, devemos começar por agradecer à Bahia — e quem sabe pedir desculpas por tê-la deixado tanto tempo no rodapé dos livros. Afinal, como já se disse com ironia ferina: o 7 de setembro é uma cerimônia, o 2 de Julho, uma vitória.
*Zilan Costa e Silva, advogado e professor.
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