A apreensão de navios ocupa uma posição singular no direito internacional porque se situa no ponto exato de interseção entre norma jurídica, poder estratégico e controle econômico. Diferentemente do espaço terrestre, onde a soberania territorial fornece uma moldura relativamente estável para o exercício da autoridade estatal, o domínio marítimo permanece estruturalmente fluido. O navio, nesse contexto, não é apenas um bem que se move. Ele é vetor de circulação econômica, projeção da soberania do Estado do pavilhão e instrumento central do poder marítimo. Retirá-lo do controle de seu titular significa intervir simultaneamente na liberdade de navegação, no comércio internacional e no equilíbrio estratégico entre Estados.
Por isso, a apreensão de navios nunca foi tratada pelo direito internacional como um ato simples ou indiferenciado. Ao contrário, ela se fragmenta em múltiplos regimes jurídicos, cada qual associado a finalidades específicas, pressupostos próprios e limites rigorosos. O erro analítico recorrente consiste em confundir essas modalidades ou em permitir que categorias operacionais substituam qualificações jurídicas. O exame correto deve partir do efeito material produzido pelo ato, não do nome que lhe é atribuído.
Em termos funcionais, há apreensão de navio sempre que uma autoridade estatal, por meio de coerção jurídica ou material, retira, restringe ou condiciona de forma significativa o controle jurídico, operacional ou econômico da embarcação. Essa definição permite compreender arrestos civis, detenções administrativas, interdições prolongadas, seizures judiciais, capturas bélicas e confisco como espécies distintas de um mesmo gênero, ainda que submetidas a disciplinas jurídicas diversas.
O primeiro regime é o do arresto marítimo, próprio do direito marítimo privado. Trata-se de medida de natureza estritamente civil, voltada à garantia de créditos marítimos. O arresto não pressupõe ilícito penal, não envolve juízo de hostilidade política e não transfere propriedade. Seu fundamento é conservatório. O navio é tratado como garantia patrimonial para assegurar a efetividade de futura decisão judicial. Esse regime repousa sobre um pressuposto central: jurisdição territorial. O arresto só é juridicamente possível quando decretado por autoridade competente em porto ou em águas sob soberania ou jurisdição do Estado. Em alto-mar, o arresto não existe como figura jurídica válida. Qualquer retenção com base civil fora do território estatal constitui usurpação de jurisdição.
O segundo regime é o da apreensão administrativa ou penal, expressão do poder de polícia do Estado. Aqui, o navio deixa de ser mera garantia patrimonial e passa a ser considerado instrumento, meio ou produto de um ilícito. A apreensão pode ser provisória ou definitiva e pode atingir o casco, a carga ou ambos. No plano internacional, esse regime é amplamente aceito quando exercido em águas interiores, mar territorial ou portos, desde que respeitados o devido processo legal e a competência do Estado costeiro. O problema jurídico surge quando esse poder repressivo é projetado para o alto-mar. Fora das águas sob soberania, a apreensão penal só é admissível em hipóteses estritamente reconhecidas: consentimento do Estado do pavilhão, repressão à pirataria ou outras exceções expressas do direito do mar. Na ausência desses pressupostos, a apreensão penal em alto-mar é ilegal, ainda que o ilícito alegado seja grave.
O terceiro regime é o da interdição marítima, categoria central da prática contemporânea. Interdição não é um instituto jurídico autônomo, mas um meio operacional. Ela compreende um conjunto de atos — aproximação, identificação, abordagem, inspeção, escolta, desvio de rota e detenção temporária — destinados a controlar a navegação de um navio. Como observa Ian Speller, a interdição tornou-se função normal das marinhas modernas em contextos que não configuram guerra formal, situando-se em uma zona híbrida entre law enforcement, diplomacia coercitiva e uso potencial da força. Juridicamente, contudo, a interdição só é lícita se cada ato que a compõe for autorizado pelo regime aplicável. Quando breve e limitada, pode não configurar apreensão. Quando prolongada, coercitiva e impeditiva da viagem, converte-se materialmente em apropriação do navio. Em alto-mar, essa interdição só é defensável quando fundada em exceções expressas do direito do mar ou em consentimento inequívoco do Estado da bandeira.
O quarto regime é o da apreensão judicial transnacional, especialmente relevante no contexto das sanções econômicas. Nesse modelo, o navio ou, mais frequentemente, a carga é qualificada como produto ou instrumento de ilícito por decisão judicial doméstica, frequentemente sob a lógica do in rem. Trata-se de mecanismo sofisticado, que permite produzir efeitos coercitivos significativos sem declaração de guerra e sem bloqueio naval formal. No plano interno, essas apreensões podem ser plenamente válidas. No plano internacional, contudo, a validade interna não cria jurisdição externa. Como enfatiza Geoffrey Till, o controle contemporâneo do mar não se exerce mais apenas por batalhas, mas pelo controle de fluxos e redes. A apreensão ligada a sanções é expressão direta dessa lógica. Sua legalidade internacional depende do modo de execução. Cooperação voluntária, entrega da carga ou execução em porto sob jurisdição do Estado apreensor mitigam o conflito normativo. Coerção armada em alto-mar contra navio de bandeira estrangeira, não.
O quinto regime é o da captura bélica, próprio do direito dos conflitos armados no mar. A captura pressupõe conflito armado internacional. Um navio inimigo pode ser capturado como presa de guerra, com possibilidade de perda definitiva da propriedade, sujeita a controle por tribunais de prêmios. Esse é o regime mais intenso de apreensão e, justamente por isso, o mais rigidamente condicionado. Fora de um conflito armado reconhecido, a captura não existe como figura jurídica válida.
Associado à captura está o bloqueio naval, instrumento clássico de guerra econômica. O bloqueio não apreende navios isoladamente. Ele retira de um Estado o acesso marítimo. No direito internacional contemporâneo, o bloqueio é qualificado como uso da força. Ele só é lícito em contexto de conflito armado ou quando expressamente autorizado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. Como demonstram os estudos históricos sobre bloqueios, seus efeitos econômicos e sociais são profundos e prolongados, razão pela qual o direito exige pressupostos jurídicos rigorosos.
Esses regimes operam sob standards normativos transversais, sem os quais qualquer apreensão se torna ilícita. O primeiro é a jurisdição válida. O segundo é a base normativa expressa. O terceiro é a necessidade, que exige demonstração de inexistência de meios menos intrusivos. O quarto é a proporcionalidade. O quinto é a coerência entre o regime jurídico invocado e os efeitos materiais produzidos. Quando um Estado afirma agir sob lógica administrativa ou judicial, mas produz efeitos estratégicos equivalentes aos de um bloqueio, o descompasso revela a ilegalidade potencial do ato.
É nesse ponto que o caso da Venezuela adquire relevância paradigmática. Não há conflito armado reconhecido entre os Estados Unidos e a Venezuela. Logo, os regimes de captura bélica e bloqueio naval estão excluídos. Tampouco há autorização geral do Conselho de Segurança para interdição marítima. As medidas adotadas têm sido enquadradas como enforcement de sanções, repressão a ilícitos transnacionais e execução de decisões judiciais domésticas.
No plano do direito americano, esse enquadramento encontra sustentação normativa. A legislação interna confere ao Executivo poderes amplos para restringir bens, transações e meios de transporte associados a regimes sancionatórios, e a apreensão de navios ou cargas pode ser considerada válida sob a ótica doméstica. No plano do direito internacional, contudo, o exame é distinto e mais restritivo. Sanções unilaterais não suspendem a jurisdição exclusiva do Estado da bandeira em alto-mar. Não criam poder geral de interdição nem autorizam apreensões coercitivas fora de território ou águas jurisdicionais.
Como observa Colin S. Gray, estratégia e direito não operam em planos separados. A estratégia frequentemente se vale do direito para estruturar a coerção. A apreensão de navios no contexto venezuelano ilustra esse fenômeno. Interdições seletivas, apreensões judiciais da carga, pressões sobre bandeiras de conveniência e coerção indireta sobre operadores e seguradores produzem um efeito agregado de isolamento econômico. O navio é capturado. A guerra não é declarada. Mas o efeito aproxima-se funcionalmente de um bloqueio.
Essa lógica é característica da guerra contemporânea descrita por Lawrence Freedman: conflitos conduzidos abaixo do limiar da guerra formal, por meio de acumulação de pressões jurídicas, econômicas e operacionais. A apreensão de navios emerge, assim, como instrumento central da coerção marítima do século XXI.
O desafio jurídico não é negar essa realidade, mas qualificá-la com precisão. O direito internacional só permanece como limite efetivo se for capaz de distinguir claramente entre apreensão legítima e apropriação estratégica disfarçada. No domínio marítimo, mais do que em qualquer outro, a erosão silenciosa dos standards jurídicos equivale à transformação da exceção em regra.
*Zilan Costa e Silva, advogado e professor.
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