Minotauro Imperial | Por Ubiracy de Souza Braga

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Quando o então ministro da Educação Eduardo Portella, filho de Enrique Portella, espanhol e comerciante, e de Maria Diva Mattos Portella, brasileira e professora, fez seus primeiros estudos em Feira de Santana (Ba) e os secundários no Recife (Pe), onde diplomou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito, em 1955, afirmou que “a ortodoxia é a militarização da cultura”, ipso facto, em verdade chamava atenção para um modelo de reprodução social debatido outrora na França, ou na Alemanha, que colocava como centro da discussão o lugar que a educação ocupa na sociedade contemporânea. A estratégia de pesquisa adotada por Fernando Uricoechea (1978), derivada da tradição sociológica weberiana, segundo a qual “os valores sociais são princípios eletivos da ação social”, e que “o exame da simples prática da história é sociologicamente insuficiente”, são os valores que dariam sentido à ação dos indivíduos na sociedade, e a mudança dos valores através do tempo seria a melhor maneira de apreender as transformações mais profundas pelas quais o sistema social vem se processando.

O sentido da ação, tal como a caracteriza o sociólogo Max Weber (1992), diz respeito, se me permitem uma digressão à citação:

“la acción social (incluyendo tolerância o omisión) se orienta por las acciones de otros, las cuales pueden ser pasadas, presentes o esperadas como futuras (venganza por previos  ataques futuros). Los ´otros` puden ser individualizados y conocidos (el ´dinero`, por  ejemplo, significa bien – de cambio – que el agente admite en el trafico porque su acción está orientada por la espectativa de que otros muchos, ahora indeterminados y desconocidos, estarán dispuestos a aceptarlo también, por su parte, en un cambio futuro (…). No toda clase de acción – incluso de acción externa – es ´social` en el sentido aqui admitido. Por lo pronto no lo es la acción exterior cuando solo está orientada por las acciones de otros” (Weber, 1992: 18, grifado no texto).

Daí que, conceptualmente, para concordarmos com Weber,

“la acción social, como toda acción, pude ser: 1) racional con arreglo a fines: determinada por expectativas en el comportamiento tanto de objetos del mundo exterior como de ortos hombres, y utilizando esas expectativas como ´condiones` o ´medios` para el logro de fines propios racionalmente sopesados y perseguidos . 2) racional con arreglo a valores: determinada por la creencia consciente en el valor – ético, estético, religioso o de cualquiera otra forma como se Le interprete – próprio y absoluto de una determinada conducta, sin relación alguna con el resultado, o sea puramente en méritos de esse valor. 3) afectiva , especialmente emotiva, determinada por afectos y estados sentimentales actuales, y 4) tradicional: determinada por una costumbre arraigada” (Weber, 1992: 20, grifado no texto).

Seria de se esperar que, ao operar através dos “notáveis” locais, o Império brasileiro tivesse contribuído para a consolidação de seu poder como estrato social privilegiado. Paradoxalmente, o que demonstra Uricoechea é que, de fato, o caráter híbrido da Guarda Nacional terminou por impedir que se consolidasse no Brasil uma ordem senhorial, baseada em uma nobreza estratificada segundo os princípios da honra e do privilégio, e apoiada no monopólio da posse da terra. Ao contrário, a cooptação a que esta elite política era submetida através da Guarda Nacional terminou por enfraquecê-la como grupo social dotado de força própria, e prepará-la para, pouco a pouco, ir aceitando a gradual emergência de um Estado racional e próprio da sociedade burguesa e capitalista que vinha se firmando no Brasil. Como diz o autor em sua conclusão, a experiência da Guarda Nacional foi “crucial, dialeticamente, ao contribuir para delinear uma ordem pública que transcendeu o particularismo de uma sociedade patriarcal da qual ela própria emergiu”.

Assim, metade humana metade bovino, o Minotauro vivia no interior do labirinto, e devorava os que nele se perdiam. O labirinto do Império brasileiro, como tem sido bisado na novela “Sinhá Moça” (cf. memória TV Globo) reside na contradição entre a extensão do poder privado e a centralização administrativa e burocrática do poder central que, no caso da sociedade nordestina, e em particular o estado do Ceará, não cessa de se repetir, para se reconstruir em suas “manifestações coletivas”, no sentido simmeliano (cf.1982a; 1982b; 1982c) do termo. Temos então aí a tese política quando o então ministro da educação Eduardo Portella, afirmou: “eu não sou ministro, estou ministro” o que coroa a antítese sobre a militarização da cultura, tão retrógrada nos dias de hoje no Ceará.

Daí que a análise comparativa nos leva à concepção de “reflexividade” (cf. Gideens, 1991; 1994; 1999a; 199b) como contraponto ao nome de Capistrano de Abreu. Assim, o melhor início “para esta parte do estudo é a evocação do nome” de Capistrano de Abreu, como diz-nos Francisco Iglesias. Poucos brasileiros se dedicaram tanto à história e fizeram tanto por ela sob determinadas condições sociais, inclusive de espaço e tempo. Se não escreveu uma “obra maior que a pedida pelo país e pela época”, afirma Iglésias (2000:117 e ss.) “e para a qual estava como ninguém capacitado, quanto deixou é suficiente para garantir-lhe o máximo relevo”. De que outro Autor brasileiro se podia dizer o mesmo? Não é afirmativa enfática apresentar Capistrano como o primeiro patrício com o sentido interdisciplinar da ciência social no sentido contemporâneo que o emprega Edgar Morin (1986, 1994, 2002).

Essa formação de um “autodidata lúcido” e com o sentido da realidade tanto etnográfica quanto histórico-sociológica, deu-lhe a visão inovadora do quadro historiográfico, permitindo a obra máxima que realizou como homem de seu tempo. Como Varnhagen do ângulo da “neutralidade axiológica” (Weber) fugiu à história política então predominante, escrevendo com liberdade de pensamento até então quase desconhecida. Fez-se história política, fez também história social e econômica. A geografia e antropologia que cultivou através do cont®ato como tradutor certamente alargaram-lhe o horizonte de reflexão.

Etnobiograficamente falando, João Capistrano de Abreu nasceu em 1853, no sítio de Columinjuba, situado em Maranguape, no estado do Ceará. Seu pai depois de herdar a terra de seu avô, reconstruiu a casa e se tornou, por assim dizer, um dos “homens bons” da região, pois tinha o suficiente para sustentar a família e gozar de algum prestígio social. Ele pertencia à Guarda Nacional e à burocracia provincial, tendo obtido a patente de Major. A Guarda Nacional nasceu a 18 de agosto de 1831, tendo tido o Padre Diogo Antônio Feijó por “pai espiritual”. Determinou a lei ficasse ela sujeita ao ministro da Justiça, declarando-se extintos os corpos de milícias e de ordenanças (assim como os mais recentes guardas municipais), que dependiam do ministro da Guerra. A guarda nacional brasileira, criação dos liberais de 1831 prestou relevantíssimos serviços à ordem pública e foi um grande auxiliar do exército de linha nas nossas guerras estrangeiras, como ocorrem com os etnogenocídios de 1851 a 1852 e de 1864 a 1870, este último como é sabido, chamado pelo cineasta Silvio Back, Guerra do Brasil quando obteve o Prêmio Especial do Júri no III Rio-Cine Festival em 1987. Dessa última data para cá, a guarda municipal tornou-se meramente decorativa.

Eram de ordinário, os mais opulentos fazendeiros ou os comerciantes e industriais mais abastados os que exerciam, em cada município, o comandante-em-chefe da Guarda Nacional, para lembramos de Fidel Castro, quando retomando a tese de Marx segundo a qual devemos tomar o homem como raiz, afirma: “nada podra detener la marcha de la história” (cf. Castro, Editora Politica, La Habana, 1985), ou o que Lula “esqueceu” como governante: “La cancelación de la deuda externa y el nuevo orden econômico internacional como única alternativa verdadeira…” (cf. Castro, 1985) ao mesmo tempo em que a direção política, quase ditatorial, senão patriarcal, que lhes confiava o governo provincial. Tal estado de coisas passou da Monarquia para a República, até ser declarada extinta a criação de Feijó. Mas o sistema ficou arraigado de tal modo na mentalidade sertaneja, “que até hoje recebem popularmente o tratamento de ‘coronéis’ os que têm em mãos o bastão do comando da política edilícia ou os chefes de partidos de maior influência na comuna, isto é, os mandões dos corrilhos de campanário” (cf. Leal, 1975: 20 e ss.), ou nestes dias, a partir da análise comparada através da idéia de “coronelismo e neo-coronelismo: eternização do quadro de análise política do Nordeste” (cf. Carvalho, 1997).

No sítio, ele plantava cana, algodão, mandioca, feijão, milho. O trabalho era feito por escravos, agregados e pela própria família. O sítio submergia no anonimato da vida sertaneja, isolado, ainda que relativamente próximo de Fortaleza. Sua formação, considerando-se a sua origem modesta e bucólica do maciço do Baturité, fê-lo refletir inicialmente mais como autodidata do que como um scholar tendo sido alfabetizado no próprio sítio, como era de costume e, posteriormente, no Ateneu Cearense e no Seminário Episcopal do Ceará. Não é novidade as dificuldades que qualquer jovem venha a passar, seja no Brasil, seja no exterior, principalmente se se propõe a refletir sobre um “projeto intelectual” no sentido sartriano. Inicialmente ele ficou no sítio, escrevendo para jornais de Fortaleza, dando aulas em colégios. Posteriormente migrou para a Corte (RJ), um mundo certamente desconhecido e incerto, preconceituoso, racista e elitista para quem ficara marcado na configuração das seguintes palavras: “um seboso, mal vestido, sem higiene pessoal, uma figura torta, um olho pendido para o lado, de cor encardida” etc.

Sua biografia é de interesse social, se já não é um truísmo tal assertiva, na medida em que se reconhece o lugar inovador que ele obteve com o devido mérito na historiografia brasileira. Refugiou-se na literatura especializada, criando um mundo de palavras, frases, citações ora confusas, ora inovadoras, distanciando-se do seu passado, mas pari passu construindo o prestígio de homme de lettres. Contudo, não temos a pretensão de rever a sua posição pioneira no âmbito da historiografia brasileira, mas tão-só indicar pistas no plano das idéias daqueles que, seguindo as pegadas de Varnhagen tendem a engrossar fileira dos iniciadores da corrente de pensamento histórico-social que “redescobrirá o Brasil”.

Pelo que sabemos, foi José Honório Rodrigues quem percebeu como historiador, o deslocamento que ocorreu do plano das idéias literárias no Brasil, particularmente da Independência à 1a Grande Guerra (1914-18) do domínio da língua e cultura francesas, em figuras como as de Tobias Barreto e Capistrano de Abreu, conscientes da força da cultura e do pensamento germânicos. Se a influência do espírito, das idéias e da civilização francesa foi, então, permanente, também foram raros aqueles que souberam mostrar que a Europa não era representada apenas pela França e que outras culturas poderiam beneficiar, talvez, o Brasil. Capistrano de Abreu foi um destes poucos. Alguns “nordestinos” ainda insistem nesta idéia e, de certo modo com o “retorno do reprimido”, têm uma tarefa hercúlea para o debate a respeito, se não perdermos de vista que a Europa continua sendo racista, como é notório o caso de homens e mulheres bem sucedidos, não só brasileiros, como são exemplares em seus depoimentos publicados na Europa hic et nunc e de resto no Brasil sobre discriminação étnica e racial, mas que não trataremos agora.

Ipso facto seria um equívoco supor que a preocupação com valores faz desta uma obra idealista, que considerasse que do nível normativo derivassem todas as demais características da estrutura social. Na melhor tradição weberiana, Uricoechea se preocupa com o relacionamento entre o normativo e o estrutural. Segundo sua própria descrição, sua obra procura reexaminar a organização política brasileira do século XIX em termos das vicissitudes e tensões entre essas duas estruturas de governo, o aparato administrativo controlado burocraticamente pelo Estado e impulsionando a burocratização total do governo e, de outro lado, a existência paralela de um aparato administrativo controlado patrimonialisticamente pelas classes sociais exercendo pressão para a “prebendalização dos cargos”.

Enfim, uma breve lembrança sobre nuestra América

“Déjeme ver si había outro más. Ah!, un dominicano, Pichirilo se llamaba, era dominicano, antitrujillista, muy buena persona, y sabía de mar; esse sabía de mar, era manireno, despeues murió no me recurdo donde, si fue en la própria lucha contra Batista o en la lucha contra Trijillo, pero sé que años mas tarde murió; el no pudo luchar en lãs montañas con nosotros. Había un dominicano, un argentino y um mexicano; aparte de eso, 79 cubanos, éramos 82 en total”. Estejamos atentos!

Literatura consultada

CASTRO, Fidel, La cancelación de la deuda externa y el nuevo orden econômico internacional como única alternativa verdadera. Otros asuntos de interes políticos e histórico. Texto completo de la entrevista concedida al periódico Excelsior de México. La Habana: Editora Política, 1985a.

 ___________, Nada podra detener la marcha de la historia. Entrevista concedida a Jeffrey elliot y Mervin Dymallly sobre múltiples temas econômicos, políticos e históricos. La Habana:Editora Política, 1985b.

GIDDENS, Anthony, As Conseqüências da Modernidade. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1991.

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______________, The Thirdy Way: The Renewal of Social Democracy. Cambridge: Polity Press, 1999a.

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WEBER, Max, Economia y Sociedad. Esbozo de sociología comprensiva. México: Fondo de Cultura Económica, 1992.

Ubiracy de Souza Braga | usbraga@hotmail.com | Sociólogo, Cientista Político. Professor da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (uece). Autor de “Trabalho e Conhecimento: Efeitos Econômicos e Políticos na Reprodução do Trabalho no Brasil”. Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, 1990.


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