Milarepa, o santo que voava

Juarez Bomfim e Cecília Maringoni. Ao fundo, a Cordilheira do Himalaia (Nepal)
Juarez Bomfim e Cecília Maringoni. Ao fundo, a Cordilheira do Himalaia (Nepal)
Juarez Bomfim e Cecília Maringoni. Ao fundo, a Cordilheira do Himalaia (Nepal)

Ao alcançar a iluminação, o grande yogue obteve todo o conhecimento transcendental e os poderes sobrenaturais e passou a ser conhecido pelos aldeões das vilas tibetanas como “o santo que voava”.

De infância abastada, Milarepa perdeu o pai ainda criança. No leito de morte, o pai pediu que o menino, sua irmã e sua mãe fossem cuidados pelos tios, que deveriam também administrar todas as posses da família até a maioridade de Mila.

Cruéis e malvados, os tios lhes roubaram todas as posses, e eles se tornaram servos dentro de sua própria casa.

Quando atingiu a idade adulta, sua mãe envia Milarepa para aprender a arte da magia negra com um poderoso feiticeiro da região, com o intuito de vingança dos parentes que os levaram à degradação social e escárnio público. E o adverte:

— Se você voltar e não cumprir o meu desejo de vingança, me matarei em sua frente!

Após longa iniciação na arte da magia negra, Milarepa se torna um Grande Feiticeiro e volta à sua terra natal. Do alto das montanhas avista a vila onde habitava sua mãe e os seus inimigos. Levanta as mãos para o alto e convoca o vento e a tempestade para destruir tudo lá embaixo — parentes, animais, casas e lavoura.

Jura que os tios traidores e larápios não terão descendentes vivos. Resolve poupá-los da morte, para sofrerem e chorarem a perda de todos os seus nove filhos.

Quando os parentes estão reunidos para comemorarem a próspera colheita daquele ano, Milarepa faz o salão de festas ruir, soterrando 35 deles. Os tios sobrevivem.

Raios, trovões e forte chuva de granizo desceu sobre a terra, destruindo toda a colheita. Grassou enorme fome na localidade. Animais morreram. As casas foram destruídas, menos a de sua mãe e sua irmã. O Grande Feiticeiro traçou um risco protetor da área onde estava situada a modesta residência.

Revoltada, a população se reuniu para linchar sua mãe e sua irmã. Porém, temendo represálias do terrível feiticeiro, mudaram de ideia. Ninguém jamais voltou a dirigir-lhes a palavra.

Logo após esses feitos, Milarepa se arrepende amargamente. Sai à procura de um guru para lhe guiar no caminho da luz, no caminho do bem e da fraternidade.

Encontra Marpa, o Tradutor, discípulo dileto de um grande santo indiano, Naropa. Mila conta ao guru Marpa todas as suas agruras. É aceito como discípulo e chamado por todos de Grande Feiticeiro.

A partir de então, Marpa, o Tradutor, o submete a duras provas de persistência, lealdade e fidelidade ao guru. Por sete vezes Milarepa é convocado a erigir casas, torres, templos e, logo depois, insatisfeito, Marpa manda derrubar, orientando Mila a devolver pedra por pedra ao local de origem, antes da construção.

Milarepa se resigna e aceita todas as provações. Compreende que a Lei do Karma cai sobre ele, o único responsável por suas más ações do passado, e agora colhe o que plantou.

Seu guru, Marpa, age como quem despreza e desconfia do Grande Feiticeiro aceito como discípulo. Não lhe transmite os ensinos e está sempre testando a sua perseverança e paciência.

Depois de longos anos de observação e testes, finalmente Marpa lhe concede os ensinos. Milarepa se torna um bom aluno e progride no caminho da evolução espiritual.

Os 84 mil sutras (ensinos) do Buda Sakyamuni começam a ser transmitidos a Milarepa. Quando ele se despede de Marpa, o Tradutor, seu amado guru, este o orienta a levar vida ascética e meditativa.

Milarepa renuncia a tudo deste mundo, inclusive renuncia a ser um mendicante. Passa a viver nas cavernas do Himalaia, entre o Tibet e Nepal, e a se alimentar de um tipo de urtiga que nasce espontaneamente na região, que cozinha como sopa. E diz: “quem meditar nessas cavernas encontrará em abundância todos os requisitos da vida, lenha, água, raízes e ervas”.

Esta parca e frugal alimentação deu uma tonalidade verde à sua pele, e aquele asceta esquelético, desnudo, de pelos esverdeados, era confundido com um ser fantasmagórico e assustador chamado bhuta pelos caçadores que esporadicamente o encontravam.

Aos que se escandalizavam com a sua nudez e seu horrendo aspecto ele dizia que deviam era escandalizar-se com os seus próprios pecados.

Praticando com disciplina e determinação as austeridades que Marpa, seu guru, lhe orientou, Milarepa atingiu a almejada libertação em uma única existência.

Ao alcançar a iluminação, o grande yogue obteve todo o conhecimento transcendental e os poderes supranormais e sobrenaturais (sidhis) e passou a ser conhecido pelos aldeões das vilas tibetanas como “o santo que voava”.

Obteve o poder de se transformar em qualquer forma desejada e de voar pelo ar. Podia atravessar o universo sem impedimentos, em todas as direções. Podia se multiplicar em centenas de corpos, todos dotados dos mesmos poderes sobrenaturais.

Fala Milarepa: “cada uma de minhas formas multiplicadas podia atravessar o espaço, ir a algum Céu de Buda ouvir os Ensinamentos e, então, voltar e pregar o Dharma a muitas pessoas. Eu podia também transformar o meu corpo físico numa flamejante massa de fogo, ou numa vastidão de água corrente ou parada. Ao perceber que eu havia obtido infinitos poderes fenomênicos, enchi-me de felicidade e encorajamento” de pregar o Dharma (a vida correta) a todos os seres humanos e não-humanos, dos reinos do Céu, da Terra e do Mar.

Quando se torna um mestre-ensinador, é através de lindos cânticos e da poesia cantada que Milarepa transmite os virtuosos ensinos búdicos:

“No interior do templo do Monte Bodhi, meu corpo,

No interior de meu peito, onde está o Altar,

No interior da câmara superior e triangular dentro de meu coração,

O Cavalo da Mente, movendo-se como o vento, salta.

Que laço pode ser usado para prender esse Cavalo?

E em que poste deve ele ser amarrado?

Que Comida se lhe deve dar quando faminto?

Que Bebida se lhe deve dar quando sedento?

Em que estábulo se deve colocá-lo quando enregelado?

Para prender o Cavalo, utilizai, como laço, a Unidade de Propósito;

Deve-se amarrá-lo, quando agarrado, ao Poste da Meditação;

Deve-se alimentá-lo, quando faminto, com os Ensinamentos do Guru;

Deve-se dar-lhe de beber, quando sedento, do Fluxo da Consciência;

Deve-se recolhê-lo, quando enregelado, ao Estábulo da Vacuidade.

Como sela, utilizai a Vontade; como Brida, o Intelecto;

Prendei Nele, como Cilhas e Rabichos, a Fixidez Imóvel;

Passai-lhe, como Cabresto e Focinheira, os Ares Vitais.

Seu cavaleiro é o Jovem de Intelecto [a Aguda Vigilância]:

O Elmo que ele porta é o Altruísmo Mahayanico;

Sua Cota de Malha é o Saber, o Pensamento e a Contemplação;

Em suas costas carrega a Concha da Paciência;

Segura nas mãos a longa Lança da Aspiração;

E em seu flanco empunha a Espada, a Inteligência;

O polido Bambu da Mente (ou Causa) Universal,

Endireitado pela ausência de raiva ou ira,

Farpado com os Tufos das Quatro (Virtudes) Ilimitadas,

Pontilhado com a aguda Cabeça da Flecha do Intelecto,

E armado no flexível Arco da Sabedoria Espiritual,

E aí fixado, na Abertura do Sábio Caminho e do Método Correto,

Ele se lança à plena compreensão da Comunhão Total;

E assim arremessadas, as flechas caem sobre todas as Nações.

Elas atingem os Piedosos,

E matam o Duende do Egoísmo.

 E assim são dominados os Inimigos e as Más Paixões,

E assim são protegidos os vossos Parentes.

Esse Cavalo corre pela Extensa Planície da Felicidade;

Seu Objetivo é a obtenção do Estado de todos os Conquistadores.

Seus traseiros deixam para trás o apego à vida samsárica;

Sua dianteira busca o lugar seguro da Libertação.

Correndo tal carreira, sou conduzido ao Budado;

Julgai se isto é igual à vossa concepção de Felicidade:

Eu não desejo a Felicidade do mundo.”

Namastê!


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