O fundo do lago | Por Emiliano José

Emiliano José, jornalista, escritor e doutro em Comunicação e Cultura Contemporâneas e professor da Universidade Federal da Bahia (professor aposentado da UFBA).
Emiliano José, jornalista, escritor e doutro em Comunicação e Cultura Contemporâneas e professor da Universidade Federal da Bahia (professor aposentado da UFBA).

Os fatos, às vezes, pela profusão de interpretações, deixam de ser fatos em sentido duro. E passam a confundir. Até porque a mídia, que é quem elabora a nossa compreensão do mundo, ou pretende fazê-lo, está longe de ter compromisso com os fatos. O que havia algum tempo era uma espécie de jargão obrigatório do jornalismo, e que de há muito deixou de sê-lo. Ao menos para a maioria dos nossos meios de comunicação.

Posso e devo destacar as exceções, e é claro que estou me referindo aos episódios recentes que envolveram o banqueiro Daniel Dantas, e as duas mais significativas são o Terra Magazine, sob a batuta de um dos mais brilhantes repórteres brasileiros, Bob Fernandes, e CartaCapital, sob a direção do grande Mino Carta. Bob, como se sabe, foi também durante muito tempo o redator-chefe de CartaCapital. Nesses dois veículos foi possível chegar perto dos fatos.

Não quero, nesse texto, discutir os fatos em si. Os muitos fatos e versões deverão ser interpretados pelos leitores, expectadores e ouvintes de nossa mídia. E vejam como é curioso: parece que faz uma eternidade que esses fatos tão recentes, envolvendo Daniel Dantas, ocorreram. A mídia esfria ou esquenta os fatos, a depender de seus interesses, de seu específico olhar. Creio que o nosso povo tem aprendido bastante a fazer a leitura da mídia, ao contrário do que ela própria pensa. Não tivesse, e Lula não teria sido eleito para o segundo mandato.

A mídia brasileira, exceções à parte, com seu impressionante partidarismo, dificilmente voltará a ter qualquer atitude jornalística, sequer aquela de seguir os manuais de procedimentos guardados em suas gavetas. Ela é refém de interesses inconfessáveis e que só, aqui e ali, vêm à tona, como ocorreu no caso do banqueiro, que eu também não vou me reportar.

O que pretendo é afirmar que há um processo positivo em curso no Brasil. Por mais que se queira incentivar a impunidade, por mais que a mídia sempre encontre meios oblíquos para desviar o foco das questões centrais, creio que há uma caminhada que pode nos levar positivamente a uma situação onde a lei valha para todos. Claro que estamos falando de um processo não concluído, mas é inegável que têm ocorrido coisas no Brasil dantes nunca vistas. Esse mérito, independentemente da análise desse ou daquele caso, o governo Lula tem tido. Inclusive o de tornar muito mais transparente a chamada coisa pública, especialmente a partir da Controladoria Geral da União.

Não acho que seja um processo fácil. Ele ocorre no diapasão da vida política brasileira. A mudança não é tão rápida como desejaríamos. Nunca foi. As elites, nossas classes dominantes sabem se defender. Com a ajuda interessada de nossa mídia. A gritaria contra a prisão de membros da elite nunca encontra correspondência quando pobres, negros, jovens ou velhos são presos, algemados, maltratados, assassinados. Brancos e ricos não podem ser presos, quanto mais algemados, a mídia insiste é nisso. Ela sempre tem lado, e não varia.

E nossa Justiça, mais ainda nos tribunais superiores, não é tão republicana assim, para dizer o mínimo. Os advogados de Daniel Dantas fizeram a confissão de que na parte de cima do Judiciário está tudo dominado.

Mas, estamos caminhando. Até o fato de o banqueiro ter dito que iria “detonar tudo” antes de ser libertado pelo habeas-corpus salvador é indicativo de uma nova situação. Por caminhos transversos, está sendo anunciado que há muita gente envolvida no caso, e agora fica difícil jogar a sujeira para debaixo do tapete. Pelo menos jogar toda a sujeira.

Gostaríamos, quem sabe, de estar assistindo a uma Operação Mãos Limpas, desencadeada na Itália no início da década de 90. Ainda não estamos. Creio, no entanto, que não há mais como voltar a situações anteriores, onde tudo se ajeitava, onde inexistiam prisões de poderosos, onde a impunidade era quase absoluta. Onde a Justiça servia para absolver grandes e condenar pequenos.

Claro que, como a Justiça é cara, como tem mecanismos variados de protelações, como está vinculada, em muitos casos, a influências externas, ainda acontece isso, mas não como antes. Um juiz como Fausto de Sanctis já não constitui uma exceção. Há magistrados sérios espalhados por todo o País.

Lembrei-me de uma observação de José Luiz Del Royo, e fui atrás dela. Está no livro Itália – Operação Mãos Limpas, da Ícone Editora. Ele lembra que a Itália conta com uma quantidade incontável de santos católicos. E fala de Santa Brígida, que nasceu na Suécia, mas afirmou sua santidade em terras italianas.

Estarrecida, horrorizada, lá pelos idos do século XIV, com a corrupção generalizada entre os governantes, refugiou-se num convento em Roma, e de lá fustigava os políticos desonestos. Dela é uma frase famosa – “As esmolas não valem nada. O que é preciso é restituir o dinheiro injustamente acumulado”. Del Royo propõe adotar Santa Brígida como protetora do Brasil. “Quem sabe se os milagres que ela começou a realizar pela Itália, cheguem também até nós!”.

Os que têm fé, neste momento, provavelmente já sentiram a proteção de Santa Brígida. Claro, não se trata de um milagre completo. No caso brasileiro, vem a conta-gotas. Até milagre, conosco, é assim. A primeira fase, da identificação de tantas maracutaias, tem sido desenvolvida, especialmente pela atuação republicana da Polícia Federal. A segunda, a de restituição do dinheiro, não tem se concretizado de forma rigorosa. São passos que estão por vir. O que é certo, volto a insistir, é que dificilmente esse processo deixará de seguir adiante. Até porque a sociedade brasileira está mais atenta, cobra mais, e não permitirá que isso ocorra.

Pensei noutro autor. Ferreira de Castro, com seu notável A curva da estrada. Este, quem quiser encontrar, só em sebo. O meu é edição de 1960, Difusão Européia do Livro. É Soriano, o protagonista, divagando, logo nas primeiras páginas.

“Um lago abre-se quando um corpo cai sobre ele; a água ondula num instante e volta a fechar-se – volta à sua paz. Parece que tudo findou. Parece que o lago esteve sempre assim e que nele não ocorreu coisa alguma. As aves que passarem nesse momento verão a superfície sem uma ruga, adormecida sob a proteção da redoma celeste. Mas o cadáver que se encontra lá em baixo começa a corromper-se pouco depois da paz ter voltado à flor da água. E, de quando em quando, enviará para cima as bolhas dos seus gases, que perturbarão a tranqüilidade da superfície. O cadáver corrompe-se no fundo do lago como um produto sódico que se dissolve no fundo dum copo; e as suas emanações gasosas rompem verticalmente através da água, como o fumo rompe das chaminés dos navios para o céu. Um morto só está definitivamente morto quando se corrompeu todo. E enquanto dura a corrupção, a calma do lago é apenas aparente”.

Creio que ainda há muito que descobrir no fundo do lago, e que não há mais jeito de as calmarias induzidas pela mídia enganarem mais. O Brasil deve continuar a luta pela correta utilização de seus recursos para melhorar a vida do povo. E para dar cada vez mais dignidade à política.


Discover more from Jornal Grande Bahia (JGB)

Subscribe to get the latest posts sent to your email.

Facebook
Threads
WhatsApp
Twitter
LinkedIn

Deixe um comentário

Discover more from Jornal Grande Bahia (JGB)

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading

Privacidade e Cookies: O Jornal Grande Bahia usa cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com o uso deles. Para saber mais, inclusive sobre como controlar os cookies, consulte: Política de Cookies.