Um pranto dolorido | Por Emiliano José

Emiliano José é jornalista, escritor e deputado federal (PT/BA). (Foto: Carlos Augusto | Jornal Grande Bahia)
Emiliano José é jornalista, escritor e deputado federal (PT/BA). (Foto: Carlos Augusto | Jornal Grande Bahia)
Emiliano José é jornalista, escritor e deputado federal (PT/BA). (Foto: Carlos Augusto (Guto Jads) - Jornal Grande Bahia)
Emiliano José é jornalista, escritor e deputado federal (PT/BA). (Foto: Carlos Augusto (Guto Jads) – Jornal Grande Bahia)

Uma elegia. Um canto profundo de dor. K. tem um quê de kafkiano, e Kafka chega a aparecer rapidamente no decorrer do texto. O autor, Bernardo Kucinski, jornalista, professor aposentado da USP, diz na abertura que tudo no livro é invenção, mas quase tudo aconteceu. Diria que tudo é realidade, e que a ficção serviu como uma luva para torná-la mais próxima dos leitores. Explicável, pelo talento do autor, que em nenhum momento, haja escorregões panfletários, se é que se pode acusar alguém de panfletário numa situação de tanto terror, como foram os anos da ditadura que alimentou tantos criminosos. Ela mesma, um crime.

O protagonista é um pai desesperado, que vaga atormentado por todos os cantos que possa, atrás do paradeiro da filha desaparecida. K. é o seu nome. Simplesmente K. O desaparecimento causa nele uma revisitação de todo seu passado de judeu polonês, militante de esquerda, fugido do nazismo, que experimentara a repressão em terras européias e que no Brasil reconstruíra a vida passando de mascate a comerciante estabelecido, e aqui, mais do que lá, cultor das letras, especialmente em iídiche, língua falada pelos judeus da Europa Oriental. A morte da filha enche-o de dor e de culpa – culpa pelo que não fez, pela convivência que acredita não ter tido enquanto ela era viva. É um belo romance, com o protagonista dando unidade a textos aparentemente desconexos.

Para quem não viveu aquele tempo, creio ser um livro essencial. Porque não é um relato histórico simplesmente. O relato da História passa ao largo da dor, da singularidade do sofrimento, da tragédia individual. Esta, quando revelada, consegue captar com mais riqueza e densidade o significado dos acontecimentos. A ficção, mesmo que profundamente assentada na realidade, tem esse condão – o de penetrar o espírito do tempo, de enxergar a alma de cada período, de perceber de modo mais obsceno a crueldade, que é sempre humana, de compreender o quanto de terror os homens podem produzir – uma ditadura é feita de pessoas, ela é, me desculpem, humana. Não é desumana, como às vezes quer uma espécie de retórica.

Lembro sempre, embora pareça óbvio, que só a espécie humana tortura. Os animais não o fazem. Se matam, o fazem pelas leis da sobrevivência. A ditadura matou, torturou, fez desaparecer pessoas. K vive o sofrimento profundo do desaparecimento de sua filha e mergulha num labirinto, atrás de alguma pista que lhe permita entender o que houve, enfrentando um sem-número de indicações falsas, extorsões, negativas de que ela tenha sido morta, e a descoberta que além da filha há tantas outras pessoas desaparecidas. E que há presos políticos, que ele um dia visita, e ali desaba numa revelação do quanto a dor o havia atingido, do quanto era insuperável aquela perda, até porque não pudera fazer o luto, não pudera enterrá-la. Nunca pôde.  O livro nos coloca, como diz a professora Maria Victoria Benevides, dentro da dor e da memória.

Kucinski consegue, driblando seu protagonista, revelar facetas da ditadura, entre as quais a do frio e cruel torturador e matador Sérgio Paranhos Fleury, e, também, características da famosa Casa de Petrópolis, a Casa do Terror, onde tantas pessoas foram mortas. Creio ter sido um exercício sofrido, o de Kucinski.  Uma dura catarse. Fala, na verdade, creio, de seu pai, que não conheço e não sei o nome, e de sua irmã, Ana Rosa Kucinski Silva, além, também, do marido dela, Wilson Silva.  Os dois, militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN), foram presos e desaparecidos em São Paulo na tarde de 22 de abril de 1974.

A família não poupou esforços para tentar localizar Ana Rosa e Wilson Silva, sem sucesso, chegando a pagar US$ 25 mil a militares, que prometiam informações, dinheiro jogado fora porque era somente uma extorsão, facilitada pelo sofrimento, pela angústia de quem quer rever ou enterrar a filha. A covardia e pusilanimidade acadêmicas do Departamento de Química da USP levaram a que Ana Rosa fosse desligada da universidade por abandono de emprego, injustiça que só foi corrigida 21 anos depois. Coragem e covardia convivem em ditaduras. K. é um ato poético de coragem. E um pranto dolorido.

*Emiliano José é jornalista, escritor e deputado federal (PT/BA).


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