Parece que foi ontem, mas já se passaram mais de duas décadas desde que um dos mais significativos artistas da música pop contemporânea esteve na Bahia e apresentou ao mundo um dos ícones da música de protesto. Em 1995, Michael Jackson (1958–2009) gravou o videoclipe de “They Don’t Care About Us” (Eles não ligam para a gente) ao lado dos músicos do Olodum, no Pelourinho, em Salvador, e de moradores do Morro Santa Marta, no Rio de Janeiro.
A letra da música, associada às imagens do videoclipe, tornou-se denúncia explícita contra a exclusão social e os elementos estruturais que evidenciam a incapacidade da elite brasileira de construir um país digno.
A denúncia social
São elementos estruturais dessa exclusão a violência cotidiana, a baixa qualidade da educação, a precariedade dos serviços de saúde, a ausência de moradia digna e a falta de acesso ao emprego formal. Diante de tais condições, a frase “eles não ligam para a gente” soa como diagnóstico e síntese de uma realidade conhecida pela maioria do povo brasileiro.
Ao comentar a canção, Michael Jackson afirmou que se tratava de “um grito contra o preconceito e o ódio, uma maneira de chamar a atenção para problemas sociais e políticos”.
As palavras da canção
O artista deu forma musical a sentimentos universais de exclusão e resistência:
“Estou cansado de ser vítima do ódio;
Eu sou vítima da brutalidade;
Mas, se Martin Luther King estivesse vivo, ele não deixaria isso acontecer;
Estou cansado de ser vítima da vergonha;
Eu sou invisível? Por que você me ignora?;
Mas, se Roosevelt estivesse vivo, ele não deixaria isso acontecer.”
Esses versos reafirmam a ideia de luta pela igualdade social e defesa da reconstrução de uma sociedade fundada no trabalho e na dignidade. É um apelo, em forma de protesto musical, contra as cegueiras deliberadas de uma elite que prefere ignorar a realidade.
A força da imagem e de Spike Lee
O videoclipe foi dirigido por Spike Lee, cineasta norte-americano cujo cinema sempre dialogou com questões raciais e sociais, a exemplo do filme Malcolm X (1992). A parceria entre Jackson e Lee reafirmou um ideal de luta de classes, voltado à dignidade da vida e à emancipação da classe trabalhadora.
A cenografia fílmica permanece, ainda hoje, como chamado pela construção de uma sociedade mais justa, igualitária e digna, sobretudo para os negros — vítimas históricas da violência de Estados conduzidos por elites plutocráticas, autoritárias e despóticas.
A genialidade além do tempo
O gênio manifesta-se pela simplicidade de gestos que adquirem significado universal. Ao escolher Spike Lee para dirigir o videoclipe e ao unir sua voz ao batuque do Olodum, Michael Jackson reafirmou a força da arte como instrumento de denúncia social.
“They Don’t Care About Us” não é apenas uma música, mas um manifesto contra as desigualdades que atravessam o tempo.
O sonho que resiste
O clipe dialoga com o discurso histórico de Martin Luther King Jr., “I Have a Dream”, proferido em 28 de agosto de 1963, em Washington:
— “Cem anos mais tarde, devemos encarar a trágica realidade de que o negro ainda não é livre. Cem anos mais tarde, a vida do negro está, ainda, infelizmente, dilacerada pelas algemas da segregação e pelas correntes da discriminação.
— Cem anos mais tarde, o negro ainda vive numa ilha isolada de pobreza no meio de um vasto oceano de prosperidade material.
— Cem anos mais tarde, o negro ainda definha nas margens da sociedade americana estando exilado em sua própria terra.”
A genialidade de Michael Jackson, ao lado da batida ancestral do Olodum, reatualizou esse sonho. Sua obra recorda que a luta contra a exclusão social permanece inacabada e que o grito pela liberdade continua a ecoar nas ruas, nas músicas e nas memórias coletivas.
Lógica do capitalismo periférico
O videoclipe de They Don’t Care About Us vai além da estética cultural e se inscreve como denúncia contra a lógica do capitalismo periférico. A mensagem de Jackson e o ritmo do Olodum expõem o antagonismo entre uma elite econômica, que concentra a riqueza e controla o Estado, e as massas trabalhadoras submetidas à precariedade.
A violência policial, a marginalização racial e a desigualdade social revelam-se não como acidentes históricos, mas como estruturas de dominação necessárias à manutenção da ordem capitalista. A reprodução da pobreza, do desemprego e da exclusão é funcional para preservar uma elite plutocrática que se beneficia do trabalho precarizado e da naturalização da miséria.
Assim, a obra de Michael Jackson, lida em chave marxista, aproxima-se de um grito de classe: a arte torna-se instrumento de resistência ao evidenciar a contradição central entre capital e trabalho. O clipe gravado no Brasil, com sua força simbólica, denuncia não apenas injustiças locais, mas o caráter global de um sistema que, parafraseando Marx, transforma vidas em estatísticas e a humanidade em mercadoria.
Confira o vídeo
*Carlos Augusto, cientista social e jornalista.
Share this:
- Click to print (Opens in new window) Print
- Click to email a link to a friend (Opens in new window) Email
- Click to share on X (Opens in new window) X
- Click to share on LinkedIn (Opens in new window) LinkedIn
- Click to share on Facebook (Opens in new window) Facebook
- Click to share on WhatsApp (Opens in new window) WhatsApp
- Click to share on Telegram (Opens in new window) Telegram
Relacionado
Discover more from Jornal Grande Bahia (JGB)
Subscribe to get the latest posts sent to your email.




