“Ideologia de gênero”: o combate a um campo científico

Em março de 2018, mulheres protestam na França contra a violência de gênero.
Em março de 2018, mulheres protestam na França contra a violência de gênero.
Em março de 2018, mulheres protestam na França contra a violência de gênero.
Em março de 2018, mulheres protestam na França contra a violência de gênero.

A ministra Damares Alves iniciou seu mandato à frente da nova pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos gerando controvérsia, ao comemorar uma suposta “nova era” no país: meninos vestiriam azul, e meninas, rosa. Ao se justificar, disse que a frase seria uma “metáfora” ao que ela chama de “ideologia de gênero”.

A expressão não é nova, mas ganhou destaque durante a campanha eleitoral passada, sendo popularizada pelo presidente Jair Bolsonaro e seus filhos. Muito antes de se tornar candidato, o ex-deputado já havia incorporado o termo no seu discurso político e se tornado um de seus principais propagadores no país.

O termo, porém, não possui base acadêmica. A suposta “ideologia de gênero” surgiu como uma expressão pejorativa para desqualificar os estudos de gênero, um campo científico interdisciplinar que analisa e investiga todo o tipo de questão relacionada ao gênero. Isso inclui, por exemplo, processos sociais e relações de poder envolvendo homens e mulheres, além da própria construção do gênero e suas representações.

“Os estudos de gênero surgiram porque a ciência predominante pesquisava somente a história e a vida dos homens. Assim, ela não era objetiva, mas unilateral. Esse campo se ocupa de questões, temas e pessoas que eram frequentemente esquecidas ou omitidas. Ao ampliar a perspectiva científica, contribuiu para aumentar a objetividade”, afirma Henning von Bargen, diretor do Instituto Gunda Werner para Feminismo e Democracia de Gênero, ligado à Fundação Heinrich Böll.

Originado nos estudos da mulher que se desenvolveram nos EUA a partir da década de 1970 com o avanço do movimento feminista, os estudos de gênero começaram a tomar forma a partir de meados dos anos 1980. Sua abordagem científica parte do princípio de que gênero é principalmente uma construção social, e não restrito apenas ao sexo biológico.

Ou seja, a sociedade, ao impor padrões que caberiam ao homem e à mulher, acaba determinando o que é entendido como característico do masculino e do feminino. Um exemplo seria o azul como cor de menino e rosa de menina ou que meninas devem brincar de bonecas e meninos de carro.

Os estudos de gênero não negam fundamentalmente o sexo biológico, mas rejeitam o entendimento somente biológico do gênero. Eles pesquisam, entre outras coisas, essa construção de categorias de diferenciação de pessoas, que são mutáveis. No início do século 20, por exemplo, rosa era a cor dos meninos, e azul, das meninas. Esses padrões sociais e culturais geram, sobretudo, desigualdades e discriminações no cotidiano, que também são analisadas neste campo de pesquisa.

“O gênero é um conceito analítico que não tem relação com uma concepção de mundo. É uma categoria de análise para observar melhor e entender melhor a sociedade, pois ela se organiza muito nas diferenças entre os gêneros”, acrescenta Regina Frey, do Instituto para Assistência Social e Pedagogia Social.

Cruzada antigênero

Com a expansão e consolidação deste campo científico, que supostamente estaria ameaçando princípios religiosos, foi lançada uma contraofensiva católica em defesa de sua doutrina e do modelo tradicional de família. Em 1998, numa nota da Conferência Episcopal do Peru, aparece pela primeira vez a expressão “ideologia de gênero”.

Segundo o pesquisador da Universidade de Brasília (UnB) Rogério Diniz Junqueira, no Brasil, religiosos começaram a usar a expressão em 2011. Mas foi somente em 2014 que o termo ganhou destaque ao aparecer nos protestos para a exclusão das expressões gênero e orientação sexual dos planos de educação. A partir de então, “ideologia de gênero” se tornou uma categoria de mobilização política.

“A ‘ideologia de gênero’ é uma invenção, um artifício retórico. Não pode ser confundido com um termo científico. A sua elaboração jamais seguiu princípios e preocupações de ordem científica. O termo aflorou no âmbito de um projeto de poder: decidiu-se utilizar o termo que melhor funcionasse politicamente segundo os objetivos dos atores que fomentam essa ofensiva reacionária”, avalia Junqueira.

Mas não foi somente no Brasil que o termo ganhou popularidade. Diversos grupos políticos e religiosos ultraconservadores iniciaram em vários países uma verdadeira cruzada antigênero, contra não somente a igualdade de gênero e o feminismo, mas também contra a diversidade sexual e de identidade.

“Por trás da mobilização antigênero estão diferentes atores, organizações, partidos, redes religiosas fundamentalistas, que são classificados no espectro político de centro a extrema direita. Com a expressão ‘ideologia de gênero’ se voltam contra avanços da democracia liberal e de uma sociedade aberta”, argumenta Von Bargen.

“Quem questiona o gênero deveria explicar por que ele é negativo e por que homens e mulheres não deveriam ter os mesmos direitos. Isso não é nenhum um pouco explicado com o termo ‘ideologia de gênero’”, acrescenta Frey, que coordenou o segundo relatório sobre equiparação do governo da Alemanha.

Políticas de gênero

Apesar da contraofensiva político-religiosa, os estudos de gênero contribuíram para compreensão de diferenças e desigualdades geradas por essas construções sociais e, desta maneira, auxiliaram no desenvolvimento de políticas públicas para promover a igualdade de gênero e combater a discriminação.

Na União Europeia, desde 1999, a perspectiva de gênero passou a ser um ponto central no desenvolvimento de políticas. Esse conceito, que ficou conhecido como Gender Mainstreaming (transversalização de gênero), busca alcançar a equiparação ao pensar nos impactos que decisões políticas e estruturais causarão para homens e mulheres e como aumentar a igualdade de oportunidades para todos os sexos.

“O objetivo da Gender Mainstreaming é a criação da igualdade de oportunidades efetiva. Essa política não compreende o homem e a mulher como grupos homogêneos, mas leva em conta que dentro desses grupos há uma diversidade de situações de vida e necessidades”, afirma Von Bargen.

Frey destaca que o Gender Mainstreaming não significa que mulheres e homens devem ser iguais e que não busca um reajuste no comportamento, mas a equiparação dos direitos. Ao pensar nos impactos de políticas percebendo e levando em conta as diferenças entre os gêneros, o Estado evita aumentar as desigualdades em direitos e oportunidades.

“Trata-se de estabelecer uma nova forma de pensar sobre todos os níveis que integra o aspecto equiparação como objetivo parcial substancial na política. A categoria gênero não levanta apenas a questão da igualdade de gênero, mas é um fator fundamental para a solução de problemas econômicos, sociais e políticos”, ressalta Von Bargen.

Entre medidas resultantes deste conceito fazem parte projetos para igualar o acesso a cargos de chefia e políticos, de equiparação salarial e de combate à violência sexual.

*Com informações do DW.


Discover more from Jornal Grande Bahia (JGB)

Subscribe to get the latest posts sent to your email.

Facebook
Threads
WhatsApp
Twitter
LinkedIn

Discover more from Jornal Grande Bahia (JGB)

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading

Privacidade e Cookies: O Jornal Grande Bahia usa cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com o uso deles. Para saber mais, inclusive sobre como controlar os cookies, consulte: Política de Cookies.