O trabalho em novas dimensões | Por Márcio Pochmann

Márcio Pochmann: Precarização invade casas, rouba tempo livre e impõe vida débito-crédito. O labor na Era Digital precisa ser regulado, mas também é essencial apostar em ações formativas, na reindustrialização e no cuidado, em busca de ocupação plena.
Márcio Pochmann: Precarização invade casas, rouba tempo livre e impõe vida débito-crédito. O labor na Era Digital precisa ser regulado, mas também é essencial apostar em ações formativas, na reindustrialização e no cuidado, em busca de ocupação plena.

O horizonte da centralidade da relação salarial perdeu força com a ruína da sociedade industrial. Há mais de três décadas, o ingresso passivo e subordinado na globalização foi acompanhado do reposicionamento do Brasil na Divisão Internacional do Trabalho, interrompendo a industrialização nacional.

Com isso, a trajetória do assalariamento sofreu significativa inflexão, sobretudo no segmento dos empregados protegidos por direitos sociais e trabalhistas. A partir de então, o projeto de construção da sociedade centrada na valorização do trabalho que fora implementado pela Revolução de 1930 passou a ser fortemente atacado.

Exemplo disso foi o desaparecimento da dualidade que comandava a composição do governo federal demarcado pela polarização entre os ministérios da Fazenda, que articulava os interesses do patronato industrial, e o do Trabalho, que integrava a conveniência do mundo do labor. De um lado, o ministério da Fazenda passou a ser ocupado por representantes dos interesses especulativos e financeiros e, de outro, o ministério do Trabalho ficou cada vez mais enfraquecido e atarefado pelas emergências da falsa polarização neoliberal entre emprego ou direitos.

Neste primeiro quarto do século 21, por exemplo, o conjunto dos países se encontra repartido no mundo entre produtores e consumidores de bens e serviços digitais. No caso brasileiro, a decadência registrada no seu desempenho, que declinou para a 13° economia do mundo, se mostra incompatível com o posto de quarto maior mercado consumidor de bens e serviços digitais.

O desequilíbrio entre a estrutura produtiva envelhecida e a modernização do padrão de consumo tem sido mantido pela via das importações de produtos com maior valor agregado e conteúdo tecnológico, financiados pela dependência do modelo primário-exportador. Em função disso, o tema do trabalho crescentemente secundarizado pela nova relação débito-crédito, fundada na captura dos rendimentos variáveis (programas públicos de transferências de renda, endividamento privado, ocupações gerais legais e ilegais, monetização das redes sociais e outras) se impôs sob novas dimensões.

A primeira se relaciona à reconceituação do trabalho diante do avanço da Era Digital. Diferentemente do que ocorria na sociedade industrial, o trabalho deixou de ser apenas uma expressão do que se realiza fundamentalmente fora de casa, em locais determinados (fábrica, escritório, banco, supermercado, canteiro de obra, lavoura e outros) e por tempo previamente definido.

A digitalização crescente da sociedade amplia cada vez mais o horizonte do trabalho que se encontra conectado em distintos locais e temporalidades. A escassa limitação regulatória ocorre paralelamente à intensificação e extensão do trabalho precário, cujo grau de exploração acompanha a sua desvalorização comparável à década de 1920.

Como dimensão promotora e protetiva, a regulação do labor seria um novo diálogo temático com as reformas trabalhista de 2017 e previdenciária de 2019 – a definição do padrão mínimo aceitável de regras, representação coletiva e solução de conflitos para o conjunto do mundo do trabalho, para além do assalariamento formal.

Na dimensão educacional e formativa, é necessária a reorganização das bases qualificadoras do trabalho atualmente existentes para atender ao longo da vida. A responsabilidade compartilhada tripartite constitui o elemento convergente com a redefinição formativa da identidade e pertencimento no mundo do trabalho.

Tudo isso converge com as novas fontes possíveis geradoras de ocupação. O dinamismo que ocorre com a reindustrialização e a reestruturação geral dos serviços de cuidado pode abrir a nova oportunidade da plena ocupação no Brasil.

Tudo isso está no horizonte de possibilidades teóricas. A sua conversão em realidade implica em compreender o trabalho de forma holística, com maioria política organizada. Do contrário, a relação salarial prosseguirá perdendo a centralidade no interior do mundo do trabalho.

*Márcio Pochmann, presidente do Instituto Lula, professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, ambos da Universidade Estadual de Campinas.

*Publicado no site Outras Palavras, em 7 de novembro de 2022.


Discover more from Jornal Grande Bahia (JGB)

Subscribe to get the latest posts sent to your email.

Facebook
Threads
WhatsApp
Twitter
LinkedIn

Discover more from Jornal Grande Bahia (JGB)

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading

Privacidade e Cookies: O Jornal Grande Bahia usa cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com o uso deles. Para saber mais, inclusive sobre como controlar os cookies, consulte: Política de Cookies.