Dispersão da Cracolândia aumentou tensão e violência no centro de São Paulo

Moradores e comerciantes dizem sofrer com o aumento da insegurança na região central da cidade.
Moradores e comerciantes dizem sofrer com o aumento da insegurança na região central da cidade.

Um ano depois da operação que dispersou a concentração de pessoas em situação de rua e que usam drogas, conhecida como Cracolândia, na Praça Princesa Isabel, o centro da capital paulista vive um aumento do medo e das tensões por todos os lados. As pessoas que dormem nas calçadas e militantes reclamam do aumento da violência policial e desmonte de políticas públicas. Moradores e comerciantes dizem sofrer com o aumento da insegurança na região central da cidade.

Logo após ação policial, à época como parte da chamada Operação Caronte, comandada pela Polícia Civil, a concentração de pessoas se espalhou por diversos pontos dos bairros da República, Santa Ifigênia, Santa Cecília e Campos Elíseos. Levantamento realizado em julho de 2022, pelo Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade), da Universidade de São Paulo, apontou 16 locais de concentração de pessoas. Atualmente, existem duas maiores concentrações, em cada lado da Avenida Rio Branco, uma mais próxima à Santa Ifigênia e a outra na região da República, além de alguns grupos menores.

Pior momento

A Guarda Civil Metropolitana (GCM) força a movimentação constante das pessoas para que a concentração não permaneça por muito tempo em um único lugar. Também são feitas ações periódicas de limpeza das ruas. Nesse momento, os guardas municipais também promovem a abordagem e revista das pessoas que estão no local. São formadas longas filas para que sejam submetidas a busca pessoal. Alguns objetos, considerados proibidos pela prefeitura, são confiscados.

“Quando a gente pensa sobre a situação das pessoas, é uma condição muito, mas muito desesperadora. Elas estão há um ano circulando sem parar e gerando uma série de conflitos com outros atores da Cracolândia, que antes não havia”, diz a antropóloga Amanda Amparo, que pesquisa a Cracolândia pelo ponto de vista das relações raciais.

A partir dos dados preliminares de um levantamento que ouviu 100 pessoas em situação de rua, Amanda afirma que a população que dorme nas calçadas da região, em sua grande maioria vê a situação atual como um dos piores momentos. “É o mais violento, a polícia é a mais violenta e essa estratégia, de fazer as pessoas circularem, não vai funcionar do ponto de vista de acabar com a Cracolândia”.

Histórico de violência

A defensora pública Fernanda Balera vê uma continuidade de políticas que já se provaram ineficazes no sentido de melhorar as condições de vida da população. “E, mais uma vez, a gente está vendo a GCM na linha de frente da Cracolândia, o que já causou inúmeros problemas. Esse histórico da atuação da guarda civil no território da Luz está, inclusive, na Justiça, em uma ação civil pública que discute o que ocorre por causa dessa prática. E isso voltou”, diz em referência a uma ação movida pelo Ministério Público de São Paulo questionando a atuação da guarda na região.

Segundo Balera, além de inúmeros relatos colhidos pela defensoria, a ação está embasada pela série de vídeos feitos com câmera escondida pelo movimento A Craco Resiste, que mostram agentes da GCM promovendo agressões com bombas de gás lacrimogêneo e spray de pimenta de surpresa, contra pessoas em situação de rua distraídas ou até sentadas. Na última segunda-feira (8), a TV Brasil flagrou o momento em que um homem foi sufocado por quatro guardas até ficar desacordado e ser levado em uma viatura.

Desmonte dos serviços

Para Fernanda, o governo do estado e a prefeitura fizeram “uma ação completamente ineficiente, super violenta” e não demonstram preocupação real em trazer soluções.

“Porque a questão continua lá da mesma forma que era antes”, enfatiza. A defensora alerta ainda para uma desestruturação dos serviços de atendimento de saúde mental.

“Uma completa desestruturação dos Caps [Centros de Atenção Psicossocial] e serviços que estão dentro da previsão legal da rede de atenção psicossocial. A criação de novos serviços e novas estratégias completamente à margem da legislação e sem nenhuma evidência científica de que essa seja a melhor abordagem”, diz. A crítica de Fernanda diz respeito aos novos serviços criados pelo governo estadual, o HUB, inaugurado em abril, e o Centro de Cuidado Prolongado, criado em fevereiro.

Moradores em conflito

O clima tenso afeta também quem vive sob um teto na região. “Com a dispersão [da Cracolândia], acho que aumenta muito mais a sensação de insegurança, principalmente quando tem ação da polícia, seja da GCM ou da Polícia Civil”, diz Pâmela Vaz, estudante que mora com os pais em um apartamento na Santa Ifigênia. “Se eles [policiais] não tratam o usuário de uma forma digna e com respeito, eles também não tratam os moradores aqui dessa forma. É sempre muito chato e desgastante ter que pedir à polícia para a gente poder passar. Ter que mostrar documento, falar para onde vai”, conta sobre a situação quando as ruas ficam fechadas pelas operações policiais.

Por outro lado, Pâmela enfrenta dificuldades por ter em parte do dia uma aglomeração com centenas de pessoas na porta de casa. “Após a dispersão da Praça Princesa Isabel, aqui é tomado pelo fluxo. E não vou falar que não atrapalha a gente de dormir ou descansar”, desabafa. Mesmo assim, a jovem diz que tenta manter boa relação com as pessoas socialmente desprotegidas. “Eu tento não criar nenhum tipo de conflito com essas pessoas, até porque são as nossas vizinhas”, comenta.

Mas não são todos os moradores da região que têm essa visão do problema. Na sexta-feira da semana passada (5), foi organizada uma manifestação em frente à delegacia dos Campos Elíseos. “Bom, como todos sabem, a situação da nossa rua está cada dia pior”, dizia um dos textos que chamava para o ato pelas redes sociais. “Só queremos direito a uma rua segura e limpa!”, acrescentava a convocação.

Mais crimes

A revolta de parte das pessoas que vive e trabalha na região está ligada a um significativo aumento dos furtos e roubos e dos eventuais casos em que lojas são invadidas em arrastões. Segundo dados da Secretaria de Estado da Segurança Pública, em maio de 2022 as delegacias de Campos Elíseos e Santa Cecília registraram aumento de 110% no número de roubos. Em todos os meses seguintes, os índices continuaram em alta, com crescimento de 74% nos furtos em fevereiro deste ano e 38% nos roubos, na comparação com o mesmo mês de 2022. Em abril, entretanto, foi divulgada queda de 24% nos furtos e 13% nos roubos, em relação ao ano passado.

Na opinião do artista e educador social Raphael Escobar, as operações acirram esse conflito. “Tem que ver o que está acontecendo antes [dos arrastões], que está tendo ação policial todo santo dia, tirando tudo das pessoas, as únicas coisas que elas têm com valor afetivo. Então, [a violência] é uma resposta do fluxo para essa situação. O que está acontecendo ali é criar um caos social”, diz.

A circulação constante também dificulta, segundo Escobar, ação dos projetos da sociedade civil que prestam atendimento a essa população. “Com ação policial diária, essas pessoas ficam mudando e fica muito difícil para a gente, trabalhador do território, conseguir achar o pessoal com quem a gente tem vínculo. Ou seja, se você tem um projeto de cuidado, fica muito difícil encontrar e continuar o projeto”.

O psiquiatra Flávio Falcone, que também atua em projetos sociais na região, acredita que há ação deliberada para instaurar o conflito entre pessoas “com CEP e sem CEP”. “Depois da deflagração da Operação Caronte, a Cracolândia passou a incomodar três bairros”, disse em entrevista à TV Brasil. “Do ponto de vista de saúde, essa operação é completamente ineficaz. Não tem nada na ciência que justifique tortura para fazer com que as pessoas se motivem para o tratamento. O que está em jogo é tirar essas pessoas, a maior parte pretas e pobres, daqui. E a burguesia branca não quer conviver com elas”, acrescenta.

Governo do estado

A Secretaria estadual de Saúde informou que o Hub, serviço que ocupou o lugar do antigo Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas, próximo ao Parque da Luz, realizou 3,5 mil atendimentos e 535 encaminhamentos para tratamento entre 6 e 30 de abril. De acordo com a pasta, o novo serviço “superou em 10,4% os atendimentos que o antigo Cratod prestou em todo mês de abril do ano passado e em 254,3% os encaminhamentos de pacientes para a realização do tratamento”.

A Secretaria de Estado da Segurança Pública disse que tem realizado a integração das polícias Civil e Militar e vê, neste momento, “início de reversão do cenário local que degradou, por décadas, a segurança local”. A pasta diz ainda que tem agido para “sufocar o tráfico de entorpecentes” e coibir os crimes patrimoniais. De acordo com a secretaria, de janeiro a 7 de maio, foram presas 142 pessoas e apreendidos 345 quilos de drogas.

Moradia e espaço de uso são propostas de movimentos para a Cracolândia

Em oposição às políticas que o governo estadual e a prefeitura de São Paulo têm oferecido para a Cracolândia, no centro da capital paulista, ativistas e pesquisadores propõem ações que não passem pela repressão. A estruturação de um programa que promova a moradia como ação central e a criação de um espaço de uso seguro, a exemplo de outros países que lidaram com situações semelhantes, são medidas que têm sido debatidas.

Em abril, o Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas e Álcool de São Paulo divulgou relatório avaliando a possibilidade da criação de um espaço de uso seguro para consumo de drogas na capital paulista. O documento contextualiza que a medida estaria dentro da ética da redução de danos.

Redução de danos

“A redução de danos é uma estratégia de cuidado dirigida a usuários e dependentes de drogas, baseada na melhoria da qualidade de vida, na ética do acolhimento e no respeito aos direitos humanos e abrange práticas variadas, entre as quais programas de trocas de agulhas e seringas, terapias de substituição, práticas de prevenção de overdose, programas de assistência, moradia, emprego e educação. Trata-se, portanto, de abordagem ao fenômeno das drogas que visa minimizar danos sociais e à saúde associados ao uso de substâncias psicoativas com previsão legal”, explica o texto.

O documento informa que existem 98 salas de uso seguro no mundo e 60 cidades, sendo que na Europa a política vigora há 30 anos. A ideia é oferecer um espaço em que as pessoas que usam drogas possam ficar, evitando a “perturbação da ordem pública”, segundo o texto, e oferecendo alternativas de cuidado aos usuários, desde insumos descartáveis, como seringas, para prevenir a transmissão de infecções, até o acompanhamento de profissionais de saúde e a assistência social.

Esses espaços existem, de acordo com o relatório, de diversas formas. O documento traz o exemplo dos Países Baixos, onde há “zona de tolerância, caracterizadas por oferecerem acomodações supervisionadas – locais de acolhimento e hospitalidade – a pessoas em situação de rua. Esses espaços frequentemente permitem o uso de substâncias ilícitas, não se caracterizam como ambiente da área da saúde, apesar de proporcionarem ações de redução de danos junto aos usuários”.

Para São Paulo, o documento do conselho recomenda a criação de um Centro de Convivência e Cooperativa Álcool e outras Drogas, que estaria dentro das previsões legais que regulam o tema no país.

Violência naturalizada

Ainda em abril, 40 organizações da sociedade civil realizaram o seminário Cracolândia em Emergência, e o espaço de uso foi um dos temas discutidos. Para a militante do movimento A Craco Resiste, Roberta Costa, o contexto de violência extrema faz com que as pessoas que usam drogas tenham dificuldade em imaginar o que seria um lugar com mais acolhimento e sem violência.

“Esse debate sobre espaços de uso tem essa dificuldade de horizonte, de sonhar mesmo. No Brasil, a violação dos direitos humanos e a violência policial estão tão naturalizadas por essas pessoas, as que mais sofrem com isso, que elas não conseguem nem imaginar a possibilidade de um mundo em que não apanhem todo dia da polícia. E isso é muito triste”, diz Roberta a partir das contribuições dos usuários de drogas colhidas durante o seminário.

No entanto, ela pondera que antes da mega operação policial de 2017, quando a Cracolândia ficava concentrada em dois quarteirões na Rua Helvetia e na Alameda Dino Bueno, em que a repressão policial era menor e menos intensa, especialistas internacionais viam o local como algo semelhante a um espaço de uso ou zona de tolerância.

“Eu tive a oportunidade de levar vários pesquisadores internacionais à Cracolândia, pessoas como Carl Hart e Liz Evans, que são especialistas em redução de danos e espaços de uso do mundo todo, e eles sempre olhavam aquele espaço – que tem muito sofrimento, muita pobreza e precisa de muitas coisas como água – como de uso impressionantemente alegre, com música”, contou a respeito das experiências que teve com o neurocientista e com responsável por criar serviços de atendimento no Canadá e nos Estados Unidos.

Para o psiquiatra Flávio Falcone, a medida reduziria o conflito instaurado na região desde a dispersão em maio do ano passado. “Um espaço de uso seguro, que resolveria o problema dos moradores e das pessoas que fazem uso e que não vão desaparecer de uma hora para outra. Nem o problema vai se resolver internando todo mundo compulsoriamente. A gente tem que usar o princípio da realidade, não o princípio do meu desejo”, defende o médico, que coordena o projeto Teto, Trampo, Tratamento.

Moradia primeiro

A iniciativa de Falcone oferece moradia para 13 pessoas que estavam em situação de rua. “Moradia em primeiro lugar. Não moradia como recompensa de um processo de abstinência, mas a moradia como um direito, antes de você fazer qualquer coisa. No meu ponto de vista, não dá para a pessoa fazer tratamento sem ter um mínimo de organização, que é a moradia. É o que a gente faz aqui nesse projeto”, afirmou em entrevista à TV Brasil.
A melhoria das condições de vida das pessoas depois que tem a segurança de um teto é muito grande, destaca o artista e educador social Raphael Escobar, que atua na Associação Birico, que também oferece moradia a um grupo menor de pessoas. “A hora que alguém vê a bomba na rua e vai para casa porque precisa se cuidar, é um grande avanço. Quando alguém pega o dinheirinho e compra uma comidinha para ele mesmo cozinhar na casa dele, eu acho isso um avanço gigantesco. Quando a pessoa tem um lugar para guardar as coisas e não ser tomada pela polícia, acho que isso é uma vitória gigantesca”, exemplifica.

A partir dessa condição mais estável, segundo Escobar, é possível que a pessoa possa trabalhar e ter autonomia. “As pessoas precisam trabalhar, 80% delas não conseguem emprego. E não é trabalhar em lanchonete no shopping. Essas lanchonetes não gostam de gente sem dente. Tem que entender o tipo de emprego, as peculiaridades do território. Partir de uma baixa exigência que, aos poucos, você possa ir construindo as possibilidades de um caminhar”, diz.

*Com informações da Agência Brasil.


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