Inveja e ideologias que atropelam o mérito, Friedrich Wilhelm Nietzsche 2 | Por Joaci Góes

Nietzsche analisa o ressentimento e a inveja em sua obra, destacando suas consequências sociais.
Nietzsche analisa o ressentimento e a inveja em sua obra, destacando suas consequências sociais.

Ao bom amigo Arthur Guimarães Sampaio!

Para Nietzsche, há paixões que são hereditárias: “Uma certa inveja enrustida, característica da plebe, é transmitida aos filhos”. Em Ecce Homo, sentencia: “Nada destrói mais rapidamente do que o ressentimento. Rancor, vulnerabilidade patológica, desejo impotente de vingança… – nenhuma reação poderia ser mais desvantajosa para quem está corroído, exaurido por este sentimento, em cuja direção, desgraçadamente, o doente se inclina”.

O ressentimento também produz sensação de culpa nos triunfadores, que passam a se autoflagelar por sentirem desconforto com o próprio êxito. Esta seria a consequência mais nefasta produzida pela inveja, porque não há nada mais calamitoso, nem contrário à natureza das coisas, do que alguém, feliz, bem constituído de corpo e de espírito, passar a duvidar do direito à felicidade, por meio tão legítimo conquistada. Em seu livro mais conhecido, Assim Falava Zaratustra, com ênfase na parte segunda, Nietzsche discorre sobre os perigos de contágio desta auto expiação equivocada. A partir de sua visão antropológica, acredita que a inveja, latente no ser humano, manifesta-se quando o homem ingressa em sociedade.

Como helenista, conheceu a inveja entre os gregos. Como seus antecessores, sucumbiu ao fascínio da cultura grega e vestiu a abominável tradição do ostracismo com a roupagem da idealização, a mesma que o levou a conceber um homem superior, capaz de livrar-se da inveja.

Como Goethe, Nietzsche considerou detestáveis as reivindicações de igualdade e de outros valores concebidos em nome da justiça social, presentes na Revolução Francesa e nas que lhe seguiram, embora, em vários trechos, tenha deixado escapar o entendimento de que essas manifestações são indispensáveis para manter a dinâmica do organismo social, cujo controle deita raízes, precisamente, nestas aspirações de igualdade e de justiça social ou, em outras palavras, no impulso invejoso, sem o qual a sociedade humana, como a conhecemos, seria inconcebível. Como mecanismo destinado a conciliar esta dupla e contraditória função da inveja, ele sugere a utilização de válvulas de escape, exaustores do ressentimento acumulado, com o objetivo de proteger o grupo social de sua ação destrutiva. O pregador religioso cumpriria uma dessas funções catárticas, de excepcional significação para o equilíbrio social, ao operar como defletor do ressentimento, mediante o convencimento do sofredor, que busca identificar o bode expiatório do seu sofrimento, de que é ele, e mais ninguém, o único responsável pela sua própria dor.

Nietzsche sustentou que a ideia de que “os humildes herdarão a terra” só serve para elevar a pobreza e o sofrimento ao patamar de virtudes, estimulando os oprimidos a agredirem os bem sucedidos, como faz o Papa Francisco. Com espantosa antevisão, prognosticou o crescimento dos ressentidos e dos invejosos no século XX, mediante a difusão da crença de ser o estado de felicidade odioso e pecaminoso. Definiu o ressentimento como a reação de pessoas que só encontram abrigo para suas ambições em vinganças imaginárias. O ressentido sente-se impotente e invejoso, incapaz de conceber-se destinatário de poder e de motivação para autorrealizar-se. Considera o Schadenfreude (felicidade diante do sofrimento do próximo) como produto do desejo psicológico de socialização, imanente à condição humana. Argumenta que a alegria que se sente do sofrimento alheio decorre da percepção de que o sofredor foi rebaixado de sua anterior condição de incômoda e injusta superioridade. Tratar-se-ia de uma postura niilista que poderia ser assim expressa: “Se eu não posso ter nem ser o que desejo, que o mundo se acabe!”.

Nietzsche enfatizou a diferença entre inveja ordinária e inveja silenciosa, considerando a primeira – restrita a comentários a respeito dos feitos invejados – menos perniciosa do que a segunda, insidiosa e conducente a um estado de latência, potencialmente explosível. Observou que “Onde a igualdade é, verdadeiramente, reconhecida e, permanentemente, observada, verificamos o aumento da propensão ao surgimento da inveja, geralmente reputada imoral e insusceptível de ser encontrada em estado natural… …Há indignação quando, numa situação de igualdade, alguém prospera acima dos seus méritos, enquanto outrem prospera abaixo”. Nietzsche aconselhava a modéstia e uma postura de fingido sofrimento para neutralizar o ataque invejoso. Equivocou-se, porém, redondamente, ao supor que a inveja pudesse estar ausente das sociedades primitivas. No próximo artigo, veremos o que pensou Miguel de Unamuno, a respeito.

*Joaci Góes, advogado, jornalista, escritor, empresário e político brasileiro, nascido em Ipirá, Bahia, em 1938, preside o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), mais antiga e uma das mais importantes instituições culturais do estado, com sede em Salvador.


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