A Nuvem levou Nery | Por Luiz Holanda

Sebastião Nery, cronista político e escritor prolífico, teve sua vida guiada por uma "nuvem". A obra de Nery deixa um legado inestimável sobre a história do Brasil.
Sebastião Nery, cronista político e escritor prolífico, teve sua vida guiada por uma "nuvem". A obra de Nery deixa um legado inestimável sobre a história do Brasil.

Certa manhã, em julho de 2017, recebi um telefonema de Sebastião Nery agradecendo o artigo que escrevi sobre o seu livro “A Nuvem”, no qual afirmei, citando Maurice Druon, que os homens chamados a representar um papel decisivo na história dos povos ignoram, na maior parte das vezes, quais os destinos que neles se encarnam. O de Nery esteve sempre encarnado na nuvem que o guiou durante toda a vida, certa de que aquele jovem, franzino e frágil, que a olhava deitado sob uma jaqueira na sua cidade natal, Jaguaquara, no interior da Bahia, possuía os talentos afortunados de um gênio sem compromissos. Ela o fez cronista político, poeta, deputado, adido cultural, advogado, professor e escritor. Nery escreveu inúmeros artigos, alguns poemas e 16 livros sobre a vida política do Brasil nesses últimos cinquenta anos.

Durante esse tempo viveu intensamente, registrando em seus escritos tudo o que via e ouvia. Em “A Nuvem”, livro autobiográfico de sua profícua e fecunda existência, Nery relata fatos e acontecimentos como um oficial de registro de eventos, insuperável no seu gênero e estilo, evidenciando, com viva imaginação, toda a experiência e habilidade de um extraordinário cronista. O livro é um misto de recordações e manifesto político, narrando a história de sua vida guiada por uma nuvem, que abriu para si as janelas do mundo. Temperamento irrequieto e perquiridor, conta a história do Brasil no tempo em que testemunhou seus melhores momentos, resgatando a memória dos fatos e descrevendo os acontecimentos e as atitudes dos personagens da época, mesmo daqueles que não tinham a mesma dimensão dos que faziam a história. Nessa trilha, ao narrar os fatos mais marcantes que presenciou, vai, ao longo da estrada, deixando pegadas na areia do tempo, abrindo caminhos, sempre andando na frente, pois “quem abre caminhos corre o risco das cobras, mas é aos pés dos que vão na frente que as borboletas se levantam”.

Indiscutivelmente autêntico em suas decisões e posições, suportou sofrimentos, incompreensões, calúnias e prisões, tudo com estoicidade e amor à justiça. Escritor prolífico em vários assuntos, dignificou-se pelo saber. Possuía um caráter tão forte quanto as baraúnas sertanejas, que jamais se dobram diante dos vendavais. A Nuvem é uma obra que pode ser apreciada tanto pelo seu conteúdo histórico quanto pelo seu fino sabor literário. “Episódios prosaicos narrados no livro como o primeiro contato com a luz elétrica aos quatro anos ou a descoberta do amor – além de outros como o encantamento juvenil pelo comunismo e a prisão sob a ditadura” -, foram descritos como lições de vida, utilizadas por ele na transmissão de seu pensamento. Sobre a política, achava que ela “tem uma coisa péssima: ela atrai demais os maus, porque o poder é quem manda e quem manda no poder é a política. Quando instrumento do mal, ela duplica o mal”.  A versatilidade de Nery chegou às raias da genialidade. Sutil, original, irônico e intuitivo, trazia consigo o rosto de Jaguaquara, transportando para o hoje o resgate histórico do ontem.

Dizem que morreu de causas naturais, talvez ainda à mesa de trabalho, como todo bom escritor. Era uma pessoa que defendia bravamente a liberdade do pensamento contra qualquer espécie de censura.  Hyung indagava se o destino era como uma nuvem que flutua em uma corrente predeterminada ou se era capaz de pegar a corrente que ela mesma escolhera. O destino de Nery estava na Nuvem que lhe aparecera, quando, deixando Jaguaquara de trem, a olhava pela janela. Ela o guiaria por um caminho que justificaria a sua existência, plena de fantásticas histórias de nossa política durante décadas, com muitas reviravoltas e personagens fascinantes. Seguindo sua Nuvem, Nery viveu em várias metrópoles do Brasil e do mundo, com destaque para Paris, a cidade que mais amou e onde mais foi amado. Em suas crônicas se debruça sobre os acontecimentos por ele vistos e vividos, ricos de fatos e de pessoas, movendo os cordéis dos fantoches e dos grandes personagens de nossa história, esquadrinhando com competência as raízes psicológicas de seus atos e a sutileza complexa de suas motivações. É assim que ele nos passa, em ondas atropeladas de emoções e hilaridades, a história política de nosso país, as peripécias, os imprevistos, os heroísmos e covardias de nossos representantes, os golpes, contragolpes, baixezas e grandezas magistralmente narradas por sua pena.

O Eclesiastes nos ensina que a vida passa como o vento, pois tudo tem o seu tempo determinado, pois há tempo de viver e tempo de morrer, e este acontece quando nossa existência se finda devido a uma grave doença ou sob o fardo dos anos. O tempo de Nery durou até que a Nuvem o levou, espalhando suas cinzas sobre o deserto dos séculos.

*Luiz Holanda, advogado e professor universitário.


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