Fredric Jameson (1934 – 2024), renomado teórico da cultura e crítico literário, apresenta em seu artigo “Cinco Teses Sobre o Marxismo Realmente Existente”, publicado originalmente na Monthly Review em abril de 1996, uma análise profunda e detalhada sobre o estado do marxismo contemporâneo, suas implicações na era do capitalismo tardio e os desafios que ele enfrenta à luz das transformações globais. Neste artigo, Jameson delineia cinco teses que investigam a relação entre o marxismo e o capitalismo, suas metamorfoses históricas e as perspectivas para o socialismo em um mundo dominado pelo capitalismo globalizado.
Primeira Tese: O Surgimento do Pós-Marxismo e a Elasticidade do Capitalismo
Fredric Jameson inicia suas teses afirmando que os movimentos chamados de “pós-marxismos” tendem a emergir em momentos de crise ou transformação estrutural do capitalismo. Ele argumenta que o marxismo, enquanto ciência das contradições internas do capitalismo, permanece relevante, uma vez que o próprio sistema capitalista continua a passar por mutações.
O capitalismo, segundo Jameson, é um sistema incrivelmente adaptável, capaz de superar suas crises internas por meio de duas principais estratégias: a expansão do mercado e a criação de novos tipos de mercadorias. Ele ressalta que, ao longo da história, o capitalismo passou por momentos de reestruturação que marcaram transições significativas, como o período do imperialismo e a era atual, caracterizada pela globalização e o domínio das corporações multinacionais. O autor sugere que o atual estágio do capitalismo pode ser considerado um dos mais expansivos, mas também levanta dúvidas sobre se este seria o estágio final, como previsto por Marx.
Jameson também destaca que o capitalismo enfrenta desafios internos, como a saturação de mercados, mas consegue contorná-los, especialmente por meio de inovações tecnológicas e o desenvolvimento de novas mercadorias, citando o uso de tecnologias como a energia atômica e a cibernética no contexto do capitalismo multinacional.
Segunda Tese: O Socialismo e o Desafio Ideológico Global
Jameson discute a ameaça enfrentada pelo socialismo em tempos contemporâneos, tanto no nível discursivo quanto no nível mais profundo, relacionado às ansiedades humanas sobre a mudança social. Ele explora como a luta entre a visão socialista de liberdade e o discurso de mercado, representado pelo “Thatcherismo mundial”, influenciou o debate sobre o sistema econômico.
De acordo com Jameson, o discurso neoliberal foi bem-sucedido em desacreditar várias propostas econômicas socialistas, como a nacionalização de indústrias e o planejamento estatal, ao associá-las à ineficiência e ao fracasso econômico. A defesa de medidas como o estado de bem-estar social tornou-se uma posição embaraçosa para a esquerda, que agora precisa revisitar suas críticas à social-democracia e considerar a dialética da mudança histórica para formular respostas adequadas à globalização.
Além disso, Jameson argumenta que o medo de mudanças radicais – o “medo antiutópico” – é uma força que impede o avanço do socialismo. Esse receio reflete uma resistência à perda das estruturas atuais de gratificação e identidade pessoal, algo que precisa ser abordado de forma direta para que o socialismo possa recuperar seu apelo.
Terceira Tese: A Revolução Como Processo Contínuo
Na terceira tese, Jameson aborda o conceito central da revolução dentro do pensamento marxista, desafiando a ideia de que a revolução seja um evento isolado e pontual. Ele defende que a revolução deve ser entendida como um processo complexo e contínuo de mudanças sistêmicas, necessário para enfrentar as contradições estruturais do capitalismo.
Jameson propõe que a revolução deve ser vista como uma série de demandas populares que se ampliam progressivamente, forçando transformações decisivas no sistema. Ele sugere que, em vez de ser definida por um único momento de violência, a revolução emerge da polarização social e da mobilização das massas, o que inevitavelmente gera resistência violenta por parte das classes dominantes.
Quarta Tese: O Colapso da União Soviética e o Sucesso do Comunismo
Nesta tese, Jameson oferece uma análise inovadora sobre o colapso da União Soviética, afirmando que seu declínio não foi resultado do fracasso do comunismo, mas, paradoxalmente, de seu sucesso enquanto estratégia de modernização. Segundo o autor, a rápida industrialização e modernização soviética aproximou o bloco oriental do Ocidente em termos econômicos, mas acabou por integrar o sistema soviético a um mundo capitalista pós-moderno, para o qual ele não estava preparado.
Jameson também reflete sobre o papel das transformações globais na década de 1980, que afetaram tanto o bloco soviético quanto os países ocidentais, culminando na estagnação econômica e no desmoronamento das estruturas políticas da União Soviética. Ele conclui que a tentativa da União Soviética de competir com o Ocidente, tanto no campo militar quanto no econômico, resultou em seu colapso.
Quinta Tese: O Futuro do Marxismo em uma Era de Globalização e Consumismo
A quinta e última tese de Jameson examina como os movimentos marxistas devem se adaptar ao contexto do capitalismo tardio e à era da globalização. O autor sugere que os novos marxismos, surgidos em resposta à globalização, terão um caráter diferente daqueles do período moderno. Ele prevê que a cultura, e não apenas a economia, desempenhará um papel central nas novas formas de resistência, uma vez que a mercantilização penetrou profundamente nas esferas culturais.
Jameson também discute como o consumismo, impulsionado pelas transformações tecnológicas e a sociedade da informação, moldará as novas lutas marxistas. Ele alerta para a necessidade de o marxismo manter uma análise estrutural das relações de produção, em vez de se render a uma moralização simplista da política.
Principais aspectos da abordagem de Fredric Jameson
Estratégias de Expansão do Capitalismo
- Expansão territorial: novos mercados e produtos em um sistema mundial cada vez mais globalizado.
- Produção de novas mercadorias: tecnologias inovadoras como energia atômica, cibernética e redes de informação.
Transformações Históricas do Capitalismo
- Capitalismo nacional: surgido com a Revolução Industrial.
- Imperialismo: expansão colonial e global do final do século XIX.
- Capitalismo multinacional: a era contemporânea, marcada pela globalização.
Desafios Ideológicos ao Socialismo
- Discurso neoliberal: desacreditação de alternativas socialistas como a nacionalização e o keynesianismo.
- Medo de mudanças radicais: resistência às utopias socialistas devido às ansiedades sobre a perda das identidades atuais.
O Colapso da União Soviética
- Sucesso do comunismo como modernização: aproximação econômica com o Ocidente, mas incapacidade de competir no mundo pós-moderno.
- Pressões globais: efeitos da globalização e da competição tecnológica na desintegração da União Soviética.
Perspectivas para o Marxismo na Globalização
- Importância da cultura: o marxismo deve focar na análise da reificação e do consumismo em um mundo cada vez mais mercantilizado.
- Desafios estruturais: a necessidade de novas formas de organização para enfrentar questões como desemprego estrutural e especulação financeira.
*Medo Antiutópico é um conceito que captura o temor da sociedade de viver em um ambiente opressivo, controlado e sem esperança, onde os elementos de uma realidade distópica – como vigilância excessiva, autoritarismo, degradação ambiental, e perda de liberdade individual – estão sempre à espreita. O medo antiutópico vai além do medo comum, pois se enraíza nas consequências de uma sociedade disfuncional e tirânica, que bloqueia o potencial humano e ameaça a existência e os direitos básicos.
*Capitalismo Tardio é um termo utilizado para descrever a fase avançada do capitalismo, onde ele atinge um nível de complexidade, desigualdade e contradições que afetam profundamente as estruturas sociais, econômicas e culturais. O termo ganhou popularidade através do filósofo Ernst Mandel e, posteriormente, de estudiosos como Fredric Jameson, que o utilizaram para abordar questões sobre o consumismo, a mercantilização da vida, e a interdependência global.
Perfil biográfico de Fredric Jameson
Fredric Ruff Jameson (Cleveland, Ohio, EUA, 14 de abril de 1934 – Durham, Inglaterra, 22 de setembro de 2024) foi um filósofo, crítico literário e teórico marxista amplamente reconhecido por sua análise das transformações culturais sob o capitalismo tardio e do fenômeno do pós-modernismo. Sua obra abrange a interseção entre literatura, cultura, economia e política, consolidando-o como uma das vozes mais proeminentes no marxismo ocidental e na crítica cultural contemporânea.
Formação e Influências Intelectuais
Jameson iniciou seus estudos no Haverford College, graduando-se em 1954, e prosseguiu para a Universidade de Yale, onde obteve seu doutorado em Literatura Comparada. Durante seu período de formação, foi fortemente influenciado pela tradição crítica europeia, em particular pelos teóricos marxistas da Escola de Frankfurt, como Theodor Adorno e Herbert Marcuse, além de György Lukács. Esses pensadores o ajudaram a moldar sua visão crítica, que integra a análise das formas culturais com as estruturas sociais e econômicas subjacentes.
Seu trabalho acadêmico se distingue por uma abordagem dialética do marxismo cultural, na qual explora questões relacionadas à historicidade, à narrativa e à totalidade. Ele busca entender como as obras literárias e culturais refletem as contradições do capitalismo e as dinâmicas de poder, propondo que a cultura, a literatura e as artes não podem ser dissociadas de seu contexto histórico-material.
Pós-modernismo e Capitalismo Tardio
A contribuição mais reconhecida de Jameson ao campo da teoria cultural foi sua análise crítica do pós-modernismo, que ele entende como a lógica cultural do capitalismo tardio. Em seu livro mais influente, Postmodernism, or, the Cultural Logic of Late Capitalism (1991), Jameson argumenta que o pós-modernismo não é apenas um estilo ou movimento artístico, mas uma condição histórica associada ao estágio mais avançado do capitalismo. Ele caracteriza o pós-modernismo por sua superficialidade, pelo esvaziamento da historicidade e pela mercantilização de todos os aspectos da vida cultural.
Jameson sugere que, no capitalismo tardio, a cultura se tornou uma mercadoria como qualquer outra, resultando em um colapso das fronteiras entre arte e consumo, e entre o original e o reprodutível. Ele também analisa o impacto desse processo na subjetividade, na percepção do tempo e na capacidade de imaginar alternativas ao sistema capitalista. Para Jameson, o pós-modernismo reflete uma perda da capacidade de pensar criticamente a história e, por isso, oferece uma visão fragmentada da realidade, que impede a formulação de projetos políticos emancipatórios.
Principais Obras
Entre os principais trabalhos de Jameson estão:
- Marxism and Form: Twentieth-Century Dialectical Theories of Literature (1971) – Nesta obra, Jameson examina as principais tradições marxistas da crítica literária, com foco em autores como Lukács, Adorno e Sartre. Ele defende a importância da teoria dialética para a análise cultural e literária.
- The Political Unconscious: Narrative as a Socially Symbolic Act (1981) – Um de seus trabalhos mais influentes, onde propõe que toda produção cultural é fundamentalmente política e deve ser lida como uma “solução simbólica” para as contradições sociais. O conceito de “inconsciente político” é central para sua análise, sugerindo que as narrativas culturais revelam, de maneira velada, as condições históricas e sociais de sua produção.
- Postmodernism, or, the Cultural Logic of Late Capitalism (1991) – Como já mencionado, este livro oferece a mais abrangente análise crítica do fenômeno do pós-modernismo, vinculando-o às transformações socioeconômicas do capitalismo global.
- Archaeologies of the Future: The Desire Called Utopia and Other Science Fictions (2005) – Nesta obra, Jameson explora a ficção científica e a utopia, argumentando que esses gêneros literários oferecem visões críticas que podem transcender as limitações impostas pelo capitalismo tardio.
Ensino e Carreira Acadêmica
Fredric Jameson lecionou em diversas universidades renomadas ao longo de sua carreira, incluindo a Universidade da Califórnia, San Diego, e a Universidade de Yale. Nos últimos anos, ele atuou como professor de Literatura e Estudos Críticos na Duke University, onde ministrou cursos sobre uma ampla gama de tópicos, como marxismo, psicanálise, existencialismo, Escola de Frankfurt, literatura e cinema modernistas, além do romance do século XIX.
Seus cursos e seminários exploravam de maneira profunda as conexões entre a produção cultural e os sistemas econômicos, bem como a crítica das ideologias predominantes na modernidade e no pós-modernismo. Seu ensino e pesquisa ajudaram a formar gerações de críticos culturais e teóricos marxistas.
Legado Intelectual
O impacto de Jameson no pensamento contemporâneo é vasto. Ele foi fundamental para a revitalização do marxismo como uma ferramenta teórica para a análise cultural e literária, especialmente em um momento em que muitos teóricos proclamavam o “fim da história” e o triunfo do capitalismo. Sua obra ofereceu uma visão crítica alternativa, argumentando que o pós-modernismo e o capitalismo tardio são inseparáveis, e que a crítica da cultura deve considerar as relações econômicas subjacentes.
Jameson também influenciou diversas áreas, incluindo os estudos literários, a teoria do cinema, os estudos culturais, a filosofia política e a crítica da ideologia. Sua abordagem interdisciplinar foi crucial para expandir os horizontes da crítica marxista, tornando sua obra indispensável para aqueles que buscam compreender as complexidades da cultura contemporânea e as formas de resistência ao capitalismo.
Em suma, Fredric Jameson deixou um legado profundo como um dos mais importantes teóricos culturais do século XX e XXI. Seu trabalho continua a inspirar debates sobre o papel da cultura na sociedade capitalista e as possibilidades de transformação social.
Fonte bibliográfica
O artigo “Cinco teses sobre o marxismo realmente existente”, de autoria de Fredric Jameson, foi republicado no site Outras Palavras.
A reportagem “Fredric Jameson e as Cinco Teses Sobre o Marxismo em Transformação: Reflexões sobre Capitalismo, Socialismo e Revolução” é parte da série de publicações do Jornal Grande Bahia com o tema ‘Fundamental Para Quem Pensa’.
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