No fim do século 14, o rei Ricardo 2º, incomodado com as críticas do parlamentar Thomas Haxey, tramou para que ele fosse considerado culpado por traição e condenado à morte. O Parlamento inglês, ao tomar conhecimento do fato, agiu imediatamente em defesa de seu membro, o que muito contribuiu para a criação das proteções especiais à liberdade de expressão dos parlamentares, descrita no artigo 9º da Bill of Rights de 1689: “a liberdade de expressão e debates ou os processos no Parlamento não devem ser impugnados ou questionados em nenhum tribunal ou lugar fora do Parlamento.”. Essa proteção, com o tempo, foi estendida para o público, pois o rei não devia ter poder para condenar à morte uma pessoa que o critica, não importando quem seja essa pessoa.
Desde então, diversos países democráticos adotaram medidas para proteger seus parlamentares de processos e prisões. Daí a defesa do presidente da Câmara, Arthur Lira, ao indiciamento, pela Policia Federal, dos deputados Marcel van Hattem e Cabo Gilberto Silva por calúnia e difamação contra um delegado da corporação, em razão de discursos por eles proferidos na tribuna do Parlamento.
Lira afirmou que os discursos feitos na tribuna da Câmara não podiam ser cerceados, citando, inclusive, o caso do deputado Moreira Alves, cassado em 1968 depois de proferir um discurso contra a ditadura militar existente na época. Lira ressaltou que “Aqueles que tentam restringir nossa liberdade de expressão legislativa desconsideram os danos profundos que essa prática causa ao Estado Democrático de Direito”. A fala do presidente da Câmara se baseou no artigo 53 da constituição de 1988, que define que “os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”.
O problema é que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) não entende assim. No inquérito que apura a suposta organização criminosa criada para atacar o tribunal e o processo eleitoral brasileiro, denominado inquérito das fakes news ou inquérito do fim do mundo, o ministro Alexandre de Moraes disse que “a jurisprudência da Corte é pacífica no sentido de que a garantia constitucional da imunidade parlamentar material somente incide no caso de as manifestações guardarem conexão com o desempenho da função legislativa ou que sejam proferidas em razão desta; não sendo possível utilizá-la como verdadeiro escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas”.
Em outro julgamento, em 2020, o então ministro do STF, Marco Aurélio Mello, afirmou que “a imunidade parlamentar pressupõe nexo de causalidade com o exercício do mandato e que declarações proferidas em contexto desvinculado das funções parlamentares não se encontram cobertas pela imunidade material”. Em um caso julgado em 2017, a ministra Rosa Weber ponderou que “a verbalização da representação parlamentar não contempla ofensas pessoais, via achincalhamentos ou licenciosidade da fala”.
Diante disso, fica difícil impedir que órgãos ou autoridades alheias ao Parlamento ajam contra a liberdade de expressão garantida aos parlamentares. De fato, diante da relevância pública e da visibilidade decorrente do mandato representativo, a opção de deixar o parlamentar exposto a numerosas e reiteradas ações judiciais exigindo responsabilização por suas falas criaria verdadeiro embaraço ao exercício do mandato, perturbando, inclusive, o funcionamento da própria Casa Legislativa. Os tribunais têm entendido que imunidade não é impunidade.
Se um parlamentar é amplamente protegido de qualquer perseguição por parte de uma autoridade ou de outro órgão ou poder, essa proteção, generalizada, pode abranger a prática de crimes comuns, pois uma proteção sem limites pode ser útil a um parlamentar que cometa qualquer tipo de crime. Não é sem razão, pois, que alguns juristas entendem que a imunidade absoluta é um estímulo à prática de delitos. Ao tornar a punição mais difícil, a imunidade estimula a conduta pouco republicana do parlamentar. Em muitos países os políticos não gozam de nenhum privilégio com a Justiça.
Na Inglaterra, os tribunais consideram que o que a lei britânica protege é a atividade do Parlamento e, para tanto, estende a sua proteção aos seus operadores. Mas isso não quer dizer que cada parlamentar desfrute de uma proteção especial enquanto cidadão. Ele só fica protegido quando está exercendo a função legislativa. Lá, essa proteção não pode ser levada a extremos. Nem mesmo o primeiro-ministro tem qualquer proteção especial se cometer crimes. Tanto lá como aqui, o que não pode é a crítica de um parlamentar ser entendida como calúnia ou difamação, pois se tudo o que ele criticar for considerada sem conexão com a função parlamentar, ele pode até perder o mandato. O delegado devia procurar a justiça se acha que foi ofendido. Não pode é a corporação, de forma unilateral, indiciar os parlamentares por suas opiniões.
*Luiz Holanda, advogado e professor universitário.
Share this:
- Click to print (Opens in new window) Print
- Click to email a link to a friend (Opens in new window) Email
- Click to share on X (Opens in new window) X
- Click to share on LinkedIn (Opens in new window) LinkedIn
- Click to share on Facebook (Opens in new window) Facebook
- Click to share on WhatsApp (Opens in new window) WhatsApp
- Click to share on Telegram (Opens in new window) Telegram
Relacionado
Discover more from Jornal Grande Bahia (JGB)
Subscribe to get the latest posts sent to your email.




