Domingo, 4 de maio de 2025 — A política externa dos Estados Unidos sob o segundo mandato de Donald Trump está rompendo com o paradigma que, por quase uma década, sustentou o discurso oficial em Washington: a chamada “competição entre grandes potências”. A análise é da cientista política Stacie E. Goddard, professora do Wellesley College, em artigo publicado na revista Foreign Affairs, intitulado “As novas esferas de influência de Trump” (Trump’s New Spheres of Influence), divulgado nesta segunda-feira (22/04/2025).
A virada de Trump: da competição ao conluio
Segundo Goddard, o primeiro mandato de Trump (2017–2021) e a presidência de Joe Biden (2021–2025) mantiveram, com diferenças ideológicas, um mesmo norte: a contenção da China e da Rússia como estratégia central dos EUA no cenário internacional. Essa orientação estava presente tanto na Estratégia de Segurança Nacional de Trump, que alertava para rivais geopolíticos, quanto na de Biden, que via na competição com potências autocráticas a garantia da ordem internacional baseada em regras.
Contudo, ao reassumir a Casa Branca em 2025, Trump rompeu rapidamente esse consenso. Em vez de seguir com o enfrentamento direto de Pequim e Moscou, passou a buscar entendimentos diretos com Xi Jinping e Vladimir Putin, acenando para uma nova arquitetura geopolítica inspirada no “Concerto da Europa” do século XIX — um sistema no qual as grandes potências coordenavam suas ações para manter a ordem internacional.
“O que Trump quer é um mundo administrado por homens fortes que trabalhem juntos […] para impor uma visão compartilhada de ordem ao resto do mundo”, sintetiza Goddard.
Esferas de influência e acordos entre líderes
Trump passou a defender acordos bilaterais com seus rivais, mesmo à custa de aliados históricos. Sinalizou apoio à cessação do conflito na Ucrânia com concessões territoriais à Rússia, relativizou a soberania de países europeus e chegou a sugerir o controle norte-americano sobre a Groenlândia e o Canal do Panamá.
Com relação à China, embora mantenha pressão tarifária, Trump manifestou intenção de firmar um pacto estratégico direto com Xi Jinping. O objetivo declarado seria regular questões como comércio, investimento, armamento nuclear e controle de fluxos ilícitos, como o fentanil.
“Resolveremos muitos problemas juntos e começaremos imediatamente”, escreveu Trump em sua plataforma Truth Social, após uma ligação com o presidente chinês.
A lógica do concerto: cooperação entre grandes potências
A autora argumenta que o modelo adotado por Trump se aproxima mais de um sistema de conluio do que de uma ordem baseada em valores democráticos. Ao dividir o mundo em esferas de influência, os EUA deixariam de se opor frontalmente a avanços russos sobre a Ucrânia ou chineses sobre Taiwan, desde que Moscou e Pequim respeitem as áreas de interesse norte-americano.
Tal lógica, para Goddard, remete à diplomacia conservadora do século XIX, em que as grandes potências buscavam evitar revoluções e mudanças sociais por meio da coordenação diplomática e repressão conjunta de instabilidades.
Os riscos do modelo de Trump
A cientista alerta que concertos de potências podem gerar estabilidade temporária, mas estão sujeitos a rupturas profundas. A história europeia mostra que o sistema do Concerto da Europa ruiu com a ascensão do nacionalismo, a corrida imperialista e a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Além disso, segundo Goddard, há limites práticos e morais:
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É improvável que potências médias aceitem passivamente a imposição de uma nova hierarquia global.
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A interdependência econômica atual impossibilita demarcações rígidas de esferas de influência.
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Conflitos como os do Oriente Médio, mudanças climáticas e pandemias não se submetem a acordos entre líderes autoritários.
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Trump, Xi e Putin não apresentam o perfil diplomático conciliador necessário para sustentar um concerto duradouro.
“Trump parece acreditar que pode construir um concerto não por meio de colaboração genuína, mas por meio de acordos transacionais, contando com ameaças e subornos”, avalia Goddard.
Entre Bismarck e Napoleão III
Ao final do artigo, a autora sugere que o sucesso ou fracasso de Trump como arquiteto de uma nova ordem mundial dependerá de sua capacidade de atuação estratégica. Se Bismarck soube manipular o Concerto da Europa em favor da Prússia, Trump corre o risco de se assemelhar mais a Napoleão III, que fracassou ao tentar usar o sistema em benefício próprio e foi instrumentalizado por potências rivais.
“O sistema desabou em um paroxismo de política de poder bruto, e o mundo foi incendiado”, alerta a autora, em referência ao colapso do concerto europeu no início do século XX.
Quem é Stacie E. Goddard
Stacie E. Goddard é uma proeminente cientista política norte-americana, especializada em relações internacionais, teoria das grandes potências, ordem internacional e legitimidade política na geopolítica contemporânea. Atualmente, ocupa o cargo de professora titular de Ciência Política e Reitora Associada da Faculdade Wellesley (Wellesley College), nos Estados Unidos, onde também dirige o Boas Center for Strategic Studies.
Doutora pela Universidade de Chicago, Goddard desenvolveu carreira acadêmica reconhecida internacionalmente por sua capacidade de articular análises históricas e contemporâneas sobre a estrutura do sistema internacional, com ênfase na retórica das potências em ascensão, rivalidades estratégicas e transformações na ordem global.
Entre suas obras de maior destaque estão:
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“When Right Makes Might: Rising Powers and World Order” (Cornell University Press, 2018), no qual examina como potências emergentes legitimam sua ascensão no sistema internacional.
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“Indivisible Territory and the Politics of Legitimacy: Jerusalem and Northern Ireland” (Cambridge University Press, 2010), estudo sobre disputas territoriais e retórica de legitimidade.
Além de suas contribuições acadêmicas, Goddard é colaboradora regular de veículos especializados em política internacional, como a revista Foreign Affairs, onde publica análises sobre geopolítica das grandes potências, rivalidades estruturais e as novas configurações do poder global.
Suas pesquisas têm se concentrado, nos últimos anos, na forma como os discursos estratégicos moldam a dinâmica entre Estados Unidos, China e Rússia, com especial atenção para os impactos da retórica revisionista em tempos de transição da hegemonia global. Em seus artigos, Goddard combina rigor teórico, domínio histórico e clareza analítica, consolidando-se como uma das principais vozes do pensamento político contemporâneo no campo das relações internacionais.
*O artigo “The Rise and Fall of Great-Power Competition: Trump’s New Spheres of Influence” (A ascensão e queda da competição entre grandes potências: As novas esferas de influência de Trump), de autoria de Stacie E. Goddard, foi publicado na Foreign Affairs, em 22 de abril de 2025.
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