Tributo a Nana Caymmi, a voz que desafiou o tempo | Por Carlos Augusto

Nana Caymmi morre no Rio de Janeiro e deixa legado de rigor estético e fidelidade à tradição da música popular brasileira.
Nana Caymmi, ícone da música brasileira, morre aos 84 anos. Intérprete de “Resposta ao Tempo”, deixa um legado de rigor estético, sobriedade e fidelidade à tradição da MPB.

Nesta quinta-feira (01/05/2025), morreu no Rio de Janeiro a cantora Nana Caymmi, aos 84 anos, deixando um legado consolidado na música brasileira. Filha de Dorival Caymmi e integrante de uma das famílias mais influentes da música nacional, Nana construiu uma carreira pautada pela sobriedade, rigor estético e interpretações que resistem ao tempo.

Ao longo de sua trajetória, Nana Caymmi se destacou por não ceder às pressões do mercado fonográfico. Seu repertório priorizou a densidade lírica, o refinamento harmônico e a introspecção interpretativa. A cantora construiu uma carreira sólida em meio a transformações estéticas da MPB, mantendo-se fiel à própria identidade.

A postura artística de Nana Caymmi sempre foi marcada por uma relação austera com o ofício de cantar. Sua interpretação jamais se curvou ao exagero ou à superficialidade emocional. Em vez disso, cultivou um estilo contido, rigoroso e fiel à essência da canção brasileira tradicional.

Essa escolha estética fez de Nana uma intérprete referencial no Brasil e no exterior. Sua música foi trilha de filmes, novelas e documentários, mas sempre emoldurada pela mesma sobriedade com que conduzia sua arte.

O lirismo de “Resposta ao Tempo” na voz de Nana Caymmi

Seu nome permanece fortemente associado à canção “Resposta ao Tempo”, lançada em 1998, composta por Aldir Blanc e Cristóvão Bastos. A música tornou-se um marco não apenas pelo lirismo da letra, mas pela interpretação sóbria, firme e emocionalmente precisa da artista, que deu à canção o status de obra definitiva sobre o enfrentamento da finitude.

Em “Resposta ao Tempo”, sua voz contrasta com o andamento lento da melodia, assumindo um caráter quase confessional. Trechos como Eu posso, ele não vai poder me esquecer sintetizam não apenas a mensagem da música, mas a própria relação da artista com o tempo, a memória e a permanência.

“Batidas na porta da frente / É o tempo” — com essa entrada contida e densa, Nana não canta; ela declara. Cada palavra, costurada com sobriedade e profundidade, carrega a marca da sua herança: filha de Dorival Caymmi, mas senhorinha de si, fez do canto um ofício de rigor emocional e dignidade interpretativa. Em “Resposta ao Tempo”, sua entrega revela uma artista que, como o tempo, não pede licença — chega e transforma.

A canção, um diálogo existencial com a finitude, ganha em Nana uma dramaticidade serena e firme. Quando ela canta “Eu posso, ele não vai poder / Me esquecer”, o ouvinte entende que não se trata de vaidade, mas de um destino anunciado: quem canta assim não se apaga. É o tempo que se curva.

O lirismo da música contrasta com a crueza da experiência de quem viveu intensamente. Ao longo da vida e da carreira, Nana Caymmi não fez concessões à pressa, ao modismo ou ao falso brilho. Preferiu o caminho da densidade, das escolhas estéticas exigentes, da entrega sem ornamentos. Por isso, “Resposta ao Tempo” tornou-se mais que uma música. Tornou-se um testamento emocional de sua própria travessia.

Hoje, ao nos despedirmos de Nana Caymmi, ouvimos de novo sua voz grave, límpida, corajosa — a voz que liberta quando o tempo aprisiona, que desperta quando o tempo adormece, e que morre de amor para ensinar ao tempo o que ele nunca soube: a intensidade de quem ama até o fim.

“Num dia azul de verão, sinto o vento atravessar a memória… Recordo um amor perdido, e o tempo volta a rir….

Gira ao meu redor, sussurra promessas de esquecimento. Caminhos se apagam. Amores, ele diz, terminam no escuro. Sozinhos.

Mas eu o contradigo: ele aprisiona, eu liberto. Ele adormece as paixões, eu as desperto.

O tempo, então, se rói. Invejoso, me vigia, tentando aprender como é que se morre de amor — para talvez, quem sabe, tentar reviver.

No fundo, é uma eterna criança. Nunca soube amadurecer. Eu posso seguir. Ele, não. Não poderá me esquecer.

E assim seguimos. Ele tentando apagar. Eu insistindo em permanecer.”

Nana Caymmi, assim como cantou, pode. E o tempo, mesmo soberano, não vai poder esquecê-la.

*Carlos Augusto, jornalista e cientista social, diretor e editor do Jornal Grande Bahia.

Confira a música

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