O futuro chegou: Desafios do Brasil e das administrações municipais na Era da Revolução Técnico-Científica | Por Carlos Augusto

O jornalista e cientista social Carlos Augusto analisa os desafios estruturais enfrentados pelo Brasil e suas administrações municipais diante da revolução tecnológica global. Com base em dados e exemplos práticos, o texto propõe uma agenda de reformas nas áreas de gestão pública, educação técnica e inovação. O conteúdo ressalta a urgência da adaptação nacional à nova lógica do modo de produção capitalista para evitar a estagnação e o colapso institucional.
Municípios brasileiros enfrentam o desafio de reestruturar suas gestões diante da acelerada transformação tecnológica global, marcada pelo avanço da inteligência artificial e mudanças profundas no mercado de trabalho.

O Brasil atravessa um momento histórico decisivo diante da Quarta Revolução Industrial, marcada pela ascensão da inteligência artificial (IA), da automação em larga escala e pela reformulação dos mecanismos de produção e reprodução do capital. Para os municípios de pequeno e médio porte, especialmente nas regiões periféricas do país, essa nova etapa do capitalismo revela e aprofunda contradições históricas ligadas à dependência tecnológica, à fragilidade fiscal e à desorganização do Estado em escala local.

Aceleração tecnológica e reorganização do capital global

Sob uma perspectiva marxista, o atual estágio do modo de produção capitalista pode ser interpretado como uma nova fase de reestruturação do capital, guiada por imperativos de valorização financeira, centralização dos meios tecnológicos de produção e eliminação progressiva da força de trabalho humana. A tecnologia, neste contexto, não surge como emancipação social, mas como instrumento de intensificação da extração de mais-valia relativa, por meio da automação e do controle algorítmico da produção e do consumo.

Segundo David Harvey, essa é uma fase de “destruição criadora”, na qual os mecanismos de reprodução do capital buscam suprimir formas de trabalho tradicionais e transferir os custos da adaptação aos Estados nacionais e, sobretudo, aos entes locais. A crise se manifesta, portanto, como parte constitutiva da dinâmica expansionista e desigual do capitalismo.

Expropriação tecnológica e dependência periférica

No Brasil, a tecnologia de ponta é majoritariamente importada, com baixa capacidade de assimilação nacional, o que reforça a dependência estrutural do país em relação ao centro do sistema. Municípios de pequeno e médio porte, marcados por economias primário-exportadoras, baixa diversificação produtiva e carência de infraestrutura, são duplamente penalizados: não participam da geração de tecnologia e tampouco usufruem plenamente de seus benefícios sociais.

Essa realidade revela o que Ruy Mauro Marini (Teoria da Dependência) denominou de subdesenvolvimento funcional: os municípios não são apenas atrasados por omissão, mas mantidos em atraso como forma de sustentar a reprodução ampliada do capital em centros mais dinâmicos. A ausência de políticas públicas integradas de qualificação técnica, conectividade digital e modernização administrativa perpetua um ciclo de exclusão tecnológica e política.

Inteligência artificial como expressão da nova mais-valia

Casos concretos de uso da inteligência artificial — como a frota autônoma da Waymo (Google), o robô-terapeuta Wobot e o sistema Aidoc de análise radiológica — demonstram que setores inteiros da economia já funcionam sob uma lógica de substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto (máquinas e algoritmos). O que está em curso é uma nova forma de acumulação capitalista, baseada na captura de dados e na vigilância algorítmica — um modelo que exacerba o desemprego estrutural e impõe enormes desafios aos gestores públicos em nível local.

Para os municípios brasileiros, isso significa:

  • Queda de arrecadação tributária, devido à desindustrialização e à erosão da base produtiva tradicional;

  • Aumento da pressão por serviços públicos (educação, saúde, segurança), em um cenário de escassez de recursos e ausência de infraestrutura digital;

  • Substituição de empregos locais por plataformas globais, sem compensações sociais ou políticas compensatórias.

Destruição Criativa e Reconfiguração do Trabalho

A economia mundial vive um choque de produtividade que redefine relações laborais. A teoria da “destruição criativa”, de Joseph Schumpeter, manifesta-se na substituição acelerada de empregos tradicionais por ocupações tecnológicas.

Redução de custos, aumento de eficiência e surgimento de novas demandas coexistem com a eliminação de postos de trabalho obsoletos. A falta de preparo institucional para essa transição compromete a capacidade de inserção do país na nova economia.

Análise sintética da Crise Estrutural do Estado Brasileiro e o Custo do Setor Público

A estrutura do Estado brasileiro enfrenta uma crise de natureza estrutural, expressa na disfunção de seus serviços públicos, no esgotamento fiscal dos municípios e na incapacidade de adaptação à nova fase do capitalismo informacional. Sob a perspectiva marxista, essa crise decorre da contradição entre as forças produtivas avançadas e as relações de produção ainda ancoradas em formas burocráticas e patrimonialistas do aparelho estatal.

O Estado como Superestrutura e a Reprodução das Elites Burocráticas

Segundo a tradição marxista, o Estado é uma superestrutura que atua na reprodução das condições materiais de dominação da classe dominante. No caso brasileiro, o Estado se configura historicamente como uma instância burocrática capturada por frações das classes dominantes — o que Nicos Poulantzas denominou de “Estado integral de classe”.

A existência de mais de 11 milhões de servidores públicos não deve ser analisada meramente do ponto de vista quantitativo, mas qualitativo: o que se verifica é a preservação de uma elite estatal — com altos salários, estabilidade irrestrita e privilégios — em detrimento da eficiência social e da ampliação da cobertura dos serviços públicos para as massas trabalhadoras.

Essa dinâmica se expressa em dados como:

  • Elevada concentração salarial no topo do funcionalismo, contrastando com o subemprego de base;

  • Resistência à avaliação de desempenho e meritocracia administrativa, travando a racionalização do aparelho estatal;

  • Desigualdade na distribuição territorial de servidores, penalizando municípios pequenos e regiões periféricas.

A consequência é o colapso fiscal de mais da metade dos municípios, reflexo do peso insustentável da previdência local e da má distribuição das receitas públicas — intensificada pelo pacto federativo regressivo.

Educação Técnica e Trabalho: Em busca da formação para a produção

O sistema educacional brasileiro, sob a lógica do capital, desvincula-se das exigências concretas da base produtiva real. Em consonância com a crítica de Louis Althusser ao “aparelho ideológico do Estado“, a escola pública opera como reprodutora das desigualdades e da alienação.

Enquanto a economia mundial migra para padrões baseados em tecnociência, automação e dados, o Brasil mantém:

  • Currículos anacrônicos, orientados para disciplinas abstratas, sem ligação com o trabalho produtivo;

  • Baixa taxa de qualificação técnica entre os jovens, em especial nos territórios empobrecidos;

  • Altos índices de evasão e analfabetismo funcional, sobretudo nas periferias urbanas e zonas rurais.

Essa contradição entre força de trabalho desqualificada e a exigência de um trabalhador multifuncional na nova divisão internacional do trabalho produz um exército industrial de reserva, como analisado por Marx, operando como instrumento de contenção salarial e precarização contínua.

A Reforma do Estado e a Centralidade dos Municípios: Alternativas a partir da base

Sob a ótica do materialismo histórico, a superação da crise não se dá por ajustes meramente tecnocráticos. É necessária uma reorganização do Estado a partir das necessidades concretas da classe trabalhadora, com foco na soberania territorial e na democratização tecnológica.

1. Reforma Administrativa sob Critérios de Justiça Social

  • Fim da estabilidade irrestrita e implementação de avaliação funcional periódica, com foco no interesse público e não no corporativismo;

  • Teto remuneratório nacional único, rompendo com os supersalários e a aristocracia de toga;

  • Equiparação entre o regime jurídico dos servidores e dos trabalhadores da iniciativa privada, eliminando privilégios e permitindo ampliação da força de trabalho estatal com base fiscal realista.

2. Reestruturação Educacional para a Nova Economia do Trabalho

  • Criação de polos técnicos intermunicipais, integrados às cadeias produtivas locais e voltados para IA, energia limpa, automação e economia popular;

  • Parcerias com IFs, SENAI e plataformas internacionais, com acesso gratuito e adaptado à realidade local;

  • Educação técnica como estratégia de reindustrialização de base municipal.

3. Democratização Tecnológica e Soberania Digital

Inspirando-se na crítica de autores como David Harvey à acumulação por despossessão, é fundamental que o acesso à tecnologia seja público, popular e descentralizado. Propõe-se:

  • Utilização de plataformas livres e interoperáveis como política de soberania digital;

  • Instituição de laboratórios públicos de inovação (GovTechs) nas áreas de saúde, mobilidade e educação;

  • Governo digital com transparência algorítmica, controle social e dados abertos, democratizando a informação pública.

Municípios como Núcleo da Transformação Estrutural

A lógica centralista do Estado brasileiro inviabiliza respostas ágeis e territorializadas à crise estrutural. Nesse contexto, os municípios devem ser agentes protagonistas de uma nova institucionalidade pública, capazes de organizar consórcios, formar redes intermunicipais de inteligência pública e disputar recursos federais com base em metas técnicas e sociais.

A atuação municipal deve basear-se em:

  • Planejamento público orientado por dados e necessidades reais da população;

  • Gestão compartilhada de soluções tecnológicas em consórcios regionais;

  • Participação cidadã nas decisões sobre investimento, infraestrutura e inovação.

Tempo das reformas: entre o atraso estrutural e a oportunidade histórica

O filósofo húngaro István Mészáros, à luz da tradição marxista, advertiu que as crises do capital não são meramente conjunturais, mas expressões estruturais de um modo de produção em exaustão histórica. No Brasil, o Estado mantém-se preso a uma forma burocrático-centralizadora herdada da modernidade liberal, que já não corresponde às exigências postas pela nova etapa da revolução técnico-científica global. A infraestrutura estatal cristalizada, marcada por interesses corporativos e paralisia institucional, revela a contradição entre forças produtivas em expansão e relações de produção arcaicas.

Nesse contexto, cabe ao Poder Executivo — especialmente nas esferas federal, estadual e municipal — assumir o protagonismo de um processo de reestruturação que rompa com os limites impostos pela dependência econômica e pelo atraso estrutural. A superação desse impasse exige vontade política fundamentada na análise concreta da realidade concreta, como propõe o método materialista histórico-dialético.

O tempo das reformas não é uma promessa futura, mas uma necessidade imediata diante do esgotamento do modelo atual de reprodução social. A omissão do Estado e das elites dirigentes representará a perda de soberania nacional, agravamento da superexploração do trabalho e intensificação da condição periférica do Brasil no Sistema Mundial.

O país se encontra em uma encruzilhada decisiva do ponto de vista histórico. Ou enfrenta com responsabilidade institucional e ruptura crítica os impasses da globalização digital sob hegemonia financeira, ou será condenado a reproduzir sua condição de subalternidade e dependência externa.

Nesse sentido, a reestruturação do sistema educacional — voltada à formação técnico-científica e crítica —, a reformulação do aparato estatal com foco na eficiência pública e na justiça social, e o investimento sistemático em ciência e tecnologia são elementos centrais de um projeto nacional de desenvolvimento. Adiar essas medidas representa escolher conscientemente o caminho da regressão histórica, agravando os conflitos sociais e a vulnerabilidade econômica do país.

Contradições estruturais do capitalismo periférico

A crise do Estado brasileiro não é conjuntural, mas expressão de contradições estruturais do capitalismo periférico em sua fase avançada. A superação desse impasse exige a substituição do modelo estatal burocrático e desigual por uma nova institucionalidade pública, democrática e tecnicamente qualificada. Os municípios, articulados em rede, têm potencial para liderar essa transição, desde que amparados por reformas profundas e guiados por uma visão de Estado voltada à emancipação social e tecnológica da população.

Entenda o conceito “Contradições Estruturais do Capitalismo Periférico Em Sua Fase Avançada”

Sob a ótica da teoria marxista, a expressão “contradições estruturais do capitalismo periférico em sua fase avançada” pode ser compreendida como a intensificação dos antagonismos inerentes à lógica de acumulação capitalista, manifestos de maneira particular nos países da periferia do sistema mundial — ou seja, naqueles que ocupam uma posição subordinada na divisão internacional do trabalho.

1. Capitalismo periférico: dependência e subdesenvolvimento estrutural

O capitalismo periférico, conforme analisado por autores como Ruy Mauro Marini, Theotonio dos Santos e Vânia Bambirra, é caracterizado por um padrão de reprodução dependente, que articula o capital interno às exigências do capital internacional, especialmente dos centros imperialistas.

Nesse contexto, a dependência econômica, tecnológica e política impede o desenvolvimento autônomo das forças produtivas, aprofundando desigualdades internas e consolidando um modelo de superexploração do trabalho — conceito fundamental de Marini. Essa superexploração se dá pela intensificação da jornada, pagamento de salários abaixo do valor da força de trabalho e elevação da produtividade sem correspondente melhoria nas condições de vida do trabalhador.

2. Fase avançada do capitalismo: financeirização, desindustrialização e crise social

Na fase avançada — ou fase atual do capitalismo monopolista financeirizado — as contradições centrais do sistema tornam-se mais agudas nas formações periféricas. Destacam-se:

  • Financeirização da economia, com subordinação do investimento produtivo ao capital especulativo;

  • Desindustrialização precoce, que rompe o vínculo entre crescimento econômico e geração de emprego;

  • Precarização generalizada do trabalho, com erosão de direitos e proliferação de formas informais, terceirizadas e uberizadas de exploração da força de trabalho;

  • Crise do Estado de bem-estar social, que nunca se consolidou plenamente na periferia, mas cuja retração ainda agrava desigualdades.

3. Contradições estruturais e crises cíclicas

As contradições estruturais manifestam-se por meio de:

  • Crescimento sem desenvolvimento, onde há expansão de setores improdutivos (como os serviços financeiros), mas sem transformação da estrutura social e produtiva;

  • Exclusão social persistente, mesmo com ciclos de crescimento econômico;

  • Conflitos distributivos entre capital e trabalho, intensificados por políticas de austeridade;

  • Reação ideológica conservadora, que busca manter a ordem burguesa diante de tensões crescentes, por vezes por meio de autoritarismo e repressão estatal.

Essas contradições não são acidentais, mas resultado da própria lógica do capital, que exige a maximização do lucro mesmo em detrimento das condições sociais e ecológicas. Na periferia, tais contradições se acentuam por conta da inserção subordinada no mercado mundial, que restringe margens de manobra para projetos de desenvolvimento nacional e autônomo.

4. Reprodução ampliada da dependência

O desenvolvimento do capitalismo na periferia não supera a dependência, mas a reproduz em níveis mais sofisticados. O endividamento externo, a abertura comercial assimétrica, a primarização das exportações e a submissão às agências internacionais de crédito são expressões dessas contradições em sua forma moderna.

Além disso, a crise ambiental, o desemprego estrutural e os fluxos migratórios forçados são sintomas de um capitalismo global em declínio, cujas contradições explodem com força redobrada nas margens do sistema.

*Carlos Augusto, jornalista e cientista social, diretor do Jornal Grande Bahia.


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