A teopoética é uma categoria teórica emergente que articula os campos da teologia, estética, filosofia e literatura, com o objetivo de repensar a linguagem e a experiência do sagrado em contextos de pluralidade simbólica, crise das instituições religiosas e transformação das formas de sensibilidade espiritual. Sua abordagem não busca substituir a teologia sistemática, mas propõe uma forma alternativa e simbólica de expressar a experiência do divino, valorizando a linguagem figurada, a arte, a narrativa e o silêncio como caminhos de aproximação ao transcendente.
Origem e etimologia do termo
O termo teopoética (do grego theos = Deus, poiesis = criação, fabricação) pode ser traduzido como “fabricação ou criação de Deus por meio da linguagem”. Surgiu no contexto intelectual norte-americano nas décadas de 1960 e 1970, sendo sistematizado inicialmente por autores como Stanley Hopper e Amos Wilder, vinculados à Universidade Drew e à Universidade de Harvard, respectivamente. Eles responderam criticamente à rigidez da teologia dogmática e ao racionalismo excessivo dos discursos religiosos tradicionais, defendendo que a linguagem sobre o divino deve ser essencialmente simbólica, criativa e aberta à experiência.
Esses teólogos foram influenciados por correntes hermenêuticas, fenomenológicas e literárias, em diálogo com pensadores como Paul Ricoeur, Hans-Georg Gadamer e Northrop Frye, além de tradições místicas ocidentais e orientais.
Desenvolvimento histórico e uso sociocultural
No campo teológico
A teopoética surge como reação ao formalismo dogmático da teologia sistemática e propõe uma forma mais sensível, estética e existencial de dizer o sagrado. Ela se manifesta em diversos espaços da teologia contemporânea, especialmente em correntes como:
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Teologia narrativa – que valoriza o poder das histórias bíblicas e da experiência de fé vivida;
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Teologia da libertação – que incorpora elementos poéticos na denúncia das opressões e no anúncio da esperança;
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Mística contemporânea – que retoma o valor do silêncio, do indizível e do paradoxo na relação com o divino.
Na literatura e arte
A teopoética também é um instrumento de leitura de obras literárias e artísticas que tratam do sagrado fora das instituições religiosas. Escritores como Clarice Lispector, Jorge Luis Borges, Octavio Paz, Fernando Pessoa, Simone Weil e Rainer Maria Rilke são frequentemente analisados à luz da teopoética por expressarem o absoluto através da linguagem poética, da inquietação ontológica e da mística do cotidiano.
Nas artes visuais, a teopoética inspira expressões simbólicas e rituais do sagrado que vão além da iconografia tradicional, assumindo formas abstratas, performáticas e comunitárias.
Na esfera sociocultural
A teopoética tem se consolidado como uma resposta simbólica aos fenômenos de secularização, pluralismo religioso e esvaziamento espiritual contemporâneo. Em contextos urbanos, periféricos, pós-coloniais e diaspóricos, ela é mobilizada como linguagem de resistência por comunidades que não se identificam com os modelos institucionais de fé, mas que buscam formas alternativas de expressão espiritual.
Exemplos incluem:
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Poéticas de matriz africana e indígena, em que o sagrado se manifesta na oralidade, na dança e no canto;
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Movimentos feministas e queer religiosos, que reinterpretam textos sagrados e liturgias com sensibilidade poética e inclusiva;
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Espiritualidades alternativas, como o neopaganismo, o cristianismo alternativo e os movimentos inter-religiosos, que adotam uma linguagem simbólica e estética para evocar o transcendente.
Funções e implicações teóricas
A teopoética cumpre várias funções no campo simbólico e cultural:
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Crítica à linguagem objetiva e prescritiva sobre Deus, que reduz a fé a fórmulas doutrinárias;
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Criação de novos horizontes espirituais, acessíveis a sujeitos marginalizados ou desiludidos com as religiões institucionalizadas;
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Mediação simbólica entre transcendência e imanência, oferecendo uma experiência sensível do sagrado;
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Revalorização da estética e da imaginação como categorias epistemológicas, contrariando o dualismo razão/emoção.
Teopoética e crítica marxista: entre o sagrado simbólico e a materialidade histórica
Intersecção entre linguagem religiosa, produção estética e crítica das ideologias revela como a teopoética pode ser lida à luz do materialismo histórico-dialético
Salvador, segunda-feira, 14/07/2025 — A teopoética, enquanto campo simbólico que articula linguagem estética e experiência do sagrado, também pode ser analisada a partir das categorias do marxismo crítico, sobretudo quando inserida no debate sobre a função social da religião, os dispositivos ideológicos de dominação e as formas de resistência simbólica. Em um mundo atravessado por contradições estruturais do capitalismo, a religiosidade poética revela tensões entre transcendência e materialidade, fé e alienação, espiritualidade e práxis histórica.
A religião como expressão de contradições sociais: de Marx a Bloch
Para Karl Marx, a religião não é apenas “o ópio do povo”, mas também “o suspiro da criatura oprimida”. Em sua obra Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1844), Marx reconhece a dimensão afetiva e simbólica da fé como resposta ao sofrimento social, ao mesmo tempo em que denuncia sua função de legitimação das desigualdades. Essa ambivalência permite situar a teopoética em um campo dialético, no qual as expressões simbólicas do sagrado podem ser vistas como formas de resistência ou de consolidação da ordem dominante.
Já em Ernst Bloch, especialmente em O Princípio Esperança (1954-1959), a religiosidade assume um papel utópico e antecipador. Para Bloch, a teologia e a arte religiosa contêm elementos emancipatórios, sonhos de um mundo reconciliado, ainda que encobertos por formas ideológicas. A teopoética, nesse sentido, torna-se um discurso do ainda-não, um chamado à transformação, ancorado na dimensão estética da esperança.
Teopoética, ideologia e estética: contribuição de Lukács e Eagleton
György Lukács, em História e Consciência de Classe (1923) e Estética (1963–1974), propõe uma leitura crítica da arte como forma de reprodução e superação das relações sociais. Embora não trate diretamente da teopoética, sua abordagem permite compreender como o discurso poético-religioso pode operar tanto na reafirmação quanto na negação da alienação. A teopoética, quando descolada da crítica social, corre o risco de estetizar a miséria ou mascarar as opressões.
Terry Eagleton, em Ideologia: uma introdução (1991) e A Ideia de Cultura (2000), retoma essa crítica ao destacar como os discursos simbólicos, incluindo os religiosos, são atravessados por interesses de classe, disputas de hegemonia e estratégias de naturalização da ordem social. Para Eagleton, a teopoética só adquire valor emancipatório quando vinculada à crítica da ideologia e à luta por justiça histórica. Isso exige situar o sagrado não como categoria abstrata, mas como prática discursiva inserida em contextos materiais concretos.
A teopoética sob a ótica da teologia da libertação
No contexto latino-americano, a Teologia da Libertação, influenciada pelo marxismo, fornece uma chave fundamental para a leitura crítica da teopoética. Autores como Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff e Juan Luis Segundo destacam que toda linguagem religiosa deve partir da realidade histórica dos pobres e oprimidos. A fé, nessa perspectiva, é inseparável da práxis libertadora.
A teopoética, nesse sentido, deve ser reinterpretada não como forma de fuga mística, mas como instrumento de denúncia profética e afirmação simbólica dos excluídos. Poéticas religiosas que nascem das periferias, das culturas populares e dos movimentos sociais expressam uma teopoética engajada, cujo horizonte é a transformação da realidade — uma “estética da libertação”.
Materialismo cultural e espiritualidade como linguagem da resistência
Teóricos do materialismo cultural, como Raymond Williams, oferecem contribuições relevantes ao propor que as formas culturais — inclusive as religiosas — devem ser analisadas em sua relação com as estruturas de produção e dominação. A teopoética, ao operar com a linguagem, o imaginário e o mito, participa da luta simbólica por hegemonia, sendo capaz de expressar tanto tradições residuais quanto formas emergentes de consciência social.
No campo das religiões afro-brasileiras, por exemplo, a poética dos orikis, das ladainhas e das danças rituais pode ser lida como forma de resistência estética e espiritual ao racismo estrutural e à dominação colonial. Essa dimensão política da teopoética revela sua potência contra-hegemônica quando enraizada nas lutas concretas dos povos.
Considerações críticas: o risco da abstração e o potencial transformador
Uma análise marxista da teopoética não nega sua relevância simbólica, mas adverte contra seu esvaziamento político. Quando desconectada das contradições históricas e das estruturas de poder, a teopoética corre o risco de reproduzir um discurso contemplativo e alienante. Por outro lado, quando vinculada a uma estética da práxis, pode tornar-se ferramenta de emancipação, de denúncia das injustiças e de construção de novos horizontes históricos.
A categoria teórica e as subcategorias associadas
A teopoética, enquanto categoria teórica complexa e interdisciplinar, articula elementos da teologia, estética, filosofia, literatura e ciências da religião. Dela emergem diversas subcategorias teóricas que organizam os campos de estudo e permitem delimitar enfoques específicos dentro da produção acadêmica, crítica e simbólica. Abaixo, segue uma lista das principais subcategorias teóricas que derivam ou se articulam com a teopoética:
1. Teopoética narrativa
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Estudo das formas narrativas que estruturam a linguagem religiosa e sua função simbólica.
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Envolve análises de parábolas, mitos fundacionais, literatura sagrada e testemunhos espirituais.
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Destaca a capacidade da narrativa de articular sentido diante do sofrimento e do mistério.
2. Teopoética apofática
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Foco na linguagem do silêncio, do indizível e da negação como modos de expressar o sagrado.
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Relaciona-se à mística negativa e à tradição dos limites da linguagem (influência de Dionísio Areopagita, Meister Eckhart, Simone Weil).
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Valoriza a experiência do transcendente como ausente, oculto ou não-representável.
3. Teopoética estética
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Investiga a dimensão estética da linguagem teológica e da experiência religiosa.
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Analisa formas, símbolos, imagens, ritos e afetos como mediações do divino.
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Envolve o estudo de arte sacra, música litúrgica, arquitetura religiosa, poesia mística e performatividade ritual.
4. Teopoética existencial
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Enfatiza a dimensão subjetiva, experiencial e afetiva da relação com o sagrado.
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Articula-se com a fenomenologia da religião e com pensadores como Paul Tillich e Gabriel Marcel.
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Valoriza o sagrado como categoria vivida, situada na angústia, no desejo e na esperança humanas.
5. Teopoética política (ou libertadora)
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Interseção entre linguagem poética do sagrado e crítica social.
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Vincula-se à teologia da libertação, aos estudos pós-coloniais e ao materialismo cultural.
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Examina como a teopoética pode servir como discurso de resistência simbólica ou instrumento ideológico.
6. Teopoética simbólica
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Fundamenta-se na análise dos símbolos religiosos como mediações da realidade espiritual.
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Influenciada por autores como Paul Ricoeur, Mircea Eliade e Carl Gustav Jung.
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Trata da função hermenêutica dos símbolos na construção de cosmovisões e mitologias.
7. Teopoética litúrgica
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Reflete sobre a performatividade e a estética da liturgia como expressão do sagrado.
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Analisa a relação entre rito, corpo, tempo e transcendência.
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Dialoga com a antropologia ritual e com a filosofia da religião.
8. Teopoética ecumênica e plural
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Explora manifestações poético-religiosas em diversas tradições de fé.
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Promove o diálogo inter-religioso por meio da arte, da linguagem e da mística.
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Valoriza a diversidade simbólica como abertura ao transcendente.
9. Teopoética hermenêutica
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Enfoca os modos de interpretação da linguagem religiosa e poética.
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Articula-se com a hermenêutica filosófica (Gadamer, Ricoeur) e com a crítica literária teológica.
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Destaca a polissemia dos textos sagrados e a função interpretativa do leitor.
10. Teopoética pós-metafísica
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Abandona os pressupostos clássicos da ontologia e da metafísica teológica.
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Influenciada por Jacques Derrida, Jean-Luc Marion e John Caputo.
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Enfatiza o “evento”, o “talvez” e o “desconstruível” como formas teopoéticas do divino.
Categoria teórica interdisciplinar,
A teopoética é uma categoria teórica interdisciplinar, crítica e criativa, que tem ganhado espaço nos debates acadêmicos, teológicos e culturais por sua capacidade de rearticular linguagem, espiritualidade e resistência simbólica em tempos de crise de sentido. Longe de propor um sistema teológico alternativo, ela oferece uma forma de habitar a linguagem e a experiência do sagrado de modo aberto, poético e plural.
*Carlos Augusto, jornalista, cientista social e editor do Jornal Grande Bahia.
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