Comando Vermelho consolida domínio territorial e impõe “lei paralela” a milhões de brasileiros: como o crime organizado governa onde o Estado falhou

O Comando Vermelho mantém controle sobre mais de mil comunidades no Rio e se expande por todo o país, explorando serviços básicos e impondo leis próprias. A Operação Contenção, com 121 mortos, expôs a ineficácia da repressão e o colapso da autoridade estatal. O domínio do CV simboliza a falência do Estado, que perdeu o monopólio da lei em amplas regiões urbanas e periféricas.
Mesmo após a maior operação policial da história, o Comando Vermelho mantém seu domínio sobre o Rio de Janeiro e o Brasil, controlando territórios, serviços e populações sob um regime de medo e ausência do Estado.

Mesmo após a megaoperação policial mais letal da história do Brasil, com 121 mortos nos complexos da Penha e do Alemão, a estrutura de poder do Comando Vermelho (CV) segue intacta. A facção, que nasceu nas prisões do Rio de Janeiro nos anos 1980, hoje atua como um sistema de governança criminal consolidado, ditando normas sociais, econômicas e culturais sobre milhões de brasileiros — um verdadeiro Estado paralelo que desafia a soberania nacional.

Com presença consolidada em 70 dos 92 municípios fluminenses e já disseminado em 25 dos 27 estados, o CV domina comunidades inteiras, controla serviços básicos e define até o modo de falar dos moradores. Segundo levantamento da Polícia Militar, a facção atua isoladamente em 36 cidades do Rio e mantém sob seu comando mais de mil comunidades, representando 62,8% das áreas sob influência de grupos armados no Estado.

A “lei do morro”: o código invisível que substitui o Estado

A “lei do morro” é mais do que uma expressão popular — é um sistema normativo alternativo, com regras de conduta, sanções e autoridade. No território do CV, não há apelos à Justiça nem ao Estado. Conflitos, dívidas e disputas pessoais são resolvidos pelo “tribunal do tráfico”, e as punições podem variar de agressões a execuções sumárias.

As proibições chegam a detalhes do cotidiano: camisas do Chelsea são vetadas por exibirem o número 3, alusivo ao rival Terceiro Comando Puro (TCP). A palavra “a gente” é banida — só se diz “nóis”. Um erro de linguagem pode gerar suspeita de traição. O vocabulário se torna uma senha de sobrevivência.

Em muitos locais, até a fé é controlada. Em comunidades onde os chefes do CV são evangélicos, práticas do candomblé e da umbanda foram proibidas. Nas palavras da coordenadora da ONG Redes da Maré, Eliana Souza, “a regulação cotidiana das favelas pelo tráfico é consequência direta da ausência do Estado como autoridade legítima”.

A economia do medo: gás, internet e transporte sob domínio do crime

O Comando Vermelho reproduziu o modelo de negócios das milícias, transformando o controle territorial em fonte de receita contínua. Além do tráfico de drogas, a facção monopoliza o fornecimento de gás, internet, TV a cabo e transporte alternativo. O botijão de gás custa R$ 130 — valor até 40% maior que nas áreas livres do domínio criminoso.

Em bairros como Itanhangá, Jacarepaguá e Vila Isabel, o controle do CV ultrapassa os limites da favela. Condomínios de classe média relatam que traficantes vendem gás e internet clandestinos, obrigando moradores a contratar “empresas” vinculadas à facção. Segundo empresários do setor de telecomunicações, cerca de 20 mil assinantes foram perdidos para o “CVNet”, rede ilegal controlada pelo tráfico.

Um provedor de internet, sob anonimato, afirmou:

O maior operador de internet do Rio hoje é o Comando Vermelho. Nossos técnicos não conseguem entrar em metade dos bairros. Quem tenta, é ameaçado.”

Em ofício à PM, a empresa denunciou que 45% do território de Niterói e São Gonçalo está inacessível por risco de morte de funcionários.

Barricadas e enclaves: cidades sitiadas pelo crime

As barricadas de ferro e concreto que bloqueiam ruas nas favelas são a marca física da soberania do CV. Elas simbolizam a fronteira entre o Brasil formal e o “Brasil do crime”. Segundo dados da PM, foram retiradas 4.400 toneladas de barreiras em 2025, mas o número de denúncias aumentou 50% em relação a 2024, totalizando mais de 10 mil registros.

Cidades como São Gonçalo, Belford Roxo e Nova Iguaçu vivem em estado de cerco permanente. São Gonçalo responde por 34% das denúncias, liderando o ranking. “As barricadas não servem só para defesa”, explica o coronel Uirá Ferreira, subsecretário de Inteligência da PM. “Elas delimitam o território, controlam o fluxo e garantem o poder econômico local.”

O controle da vida: amor, linguagem e castigo

A estrutura disciplinar do CV invade a intimidade dos moradores. Relações extraconjugais, brigas domésticas ou simples desentendimentos são julgados pelos traficantes. Homens acusados de agressão a mulheres sofrem espancamentos públicos ou execuções. Quem furta dentro da comunidade tem as mãos cortadas; quem trai a facção “para no pneu” — jargão para ser queimado vivo em pneus.

Nos bailes funk, as regras também são rígidas: não se pode gravar vídeos, esbarrar em traficantes ou usar drogas próximas a chefes locais. O descumprimento de normas, mesmo por engano, pode custar a vida. O terror é pedagógico. A socióloga Carolina Grillo, da UFF, define esse fenômeno como “autoridade armada de proximidade”, onde a facção se torna o juiz e o executor.

A infância perdida: o ciclo do recrutamento

A história de “Silva”, menino de 13 anos recrutado como fogueteiro na Vila Cruzeiro, resume a tragédia geracional nas favelas. “Enquanto os pais acham que o filho está na escola, ele está com fuzil”, disse um morador. O recrutamento infantil é parte do sistema: crianças começam avisando sobre a chegada da polícia, depois passam a vender drogas e, em poucos meses, empunham armas.

Um relatório da Unicef (2024) mostra que 58,4% das escolas cariocas estão em áreas dominadas por grupos armados, atingindo 800 mil estudantes. “O medo não é só do tiroteio”, explica Grillo. “É o medo de o filho virar soldado do tráfico.” Durante a Operação Contenção, aulas foram suspensas por três dias, e alunos se refugiaram sob carteiras para escapar dos disparos.

A guerra sem fim: polícia x facções

As operações policiais se tornaram parte do cotidiano das comunidades. Desde 2008, 707 intervenções resultaram em quase 3 mil mortes. O uso de helicópteros blindados, caveirões e armamento pesado converte as favelas em zonas de guerra. Moradores relatam casas destruídas, carros queimados e desaparecimentos não registrados oficialmente.

O Estado entra atirando, o tráfico responde com granadas. No meio, estão as famílias”, lamenta um líder comunitário da Penha. Apesar do discurso de “combate ao crime”, as facções ressurgem mais fortes após cada ofensiva, substituindo rapidamente seus chefes e reocupando o território.

O subsecretário Daniel Ferreira admitiu em audiência no Senado que a operação teve “impacto ínfimo” na estrutura do CV. O ciclo de repressão e retaliação se repete: mortes, indignação pública, promessas de investigação — e o cotidiano segue igual.

Expansão nacional e infiltração institucional

O avanço do CV não se limita ao território físico. Há indícios de infiltração em empresas de segurança, transporte e obras públicas. O grupo também influencia eleições locais, apoiando candidatos que garantam sua impunidade. Segundo o Instituto Igarapé, a facção movimenta bilhões de reais por ano, financiando negócios de fachada em estados como Pará, Ceará e Bahia.

A presença do CV em Belém, sede da COP30, levou o governo federal a mobilizar as Forças Armadas para garantir a segurança do evento. Em capitais do Nordeste, como Fortaleza e Natal, a facção disputa áreas com grupos locais, exportando seu modelo de “governança armada”.

A falência do Estado e o risco da normalização

O domínio do Comando Vermelho representa uma erosão silenciosa da autoridade estatal. As comunidades deixam de reconhecer o Estado como mediador e passam a depender dos traficantes para resolver conflitos, acessar serviços e até garantir segurança.

Esse fenômeno não é apenas criminal — é político e institucional. Ele revela a falência da política urbana, da educação pública e das políticas de segurança baseadas apenas na repressão. O Estado não ocupa o território, e o tráfico o transforma em mercado.

“O morador vive entre dois medos: o da polícia e o do bandido”, resume Eliana Souza. “A lei que vale é a do fuzil.

Vácuo de poder

A consolidação da “governança criminal” evidencia um vácuo de poder que o Estado brasileiro insiste em não preencher. Onde faltam escola, saneamento, emprego e presença policial legítima, surgem governos paralelos armados. O CV substitui o Estado, oferecendo proteção, serviços e punição — uma ordem de ferro baseada na coerção e na conveniência.

A reação estatal, centrada na letalidade, reproduz o ciclo da barbárie: mais mortes, mais revolta, mais recrutamentos. Sem políticas de inteligência financeira, urbanização e reintegração social, o poder das facções tende a crescer. O Brasil de 2025 convive com duas legalidades: a constitucional e a das armas.

O desafio não é apenas de segurança pública, mas de reconstrução institucional. A recuperação dos territórios exige ação coordenada entre União, estados e municípios — combinando força, inteligência e justiça social. Sem isso, o país continuará dividido entre o Brasil do Estado e o Brasil do Crime.

*Com informações da BBC Brasil e O Globo.

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