O Salmo 91, um dos mais conhecidos e recitados da Bíblia, ocupa lugar central na espiritualidade judaico-cristã por sua mensagem de proteção, confiança e fé inabalável. Tradicionalmente atribuído a Moisés ou Davi, o texto é lembrado em períodos de crise, perseguição, enfermidade ou guerra, sendo considerado um cântico de refúgio e segurança sob o amparo divino.
Mais do que uma simples oração, o salmo se apresenta como um manifesto teológico de confiança absoluta em Deus, no qual o fiel encontra abrigo na fidelidade do Altíssimo e força para resistir ao mal. Em linguagem poética e simbólica, o salmista descreve a intimidade entre o homem e o Criador, afirmando que aquele que habita “sob a sombra do Todo-poderoso” jamais estará desamparado.
O texto, amplamente difundido em contextos de aflição individual e coletiva, expressa uma espiritualidade de entrega total à vontade divina. Nele, Deus é retratado como refúgio, fortaleza e escudo, atributos que simbolizam tanto a proteção espiritual contínua quanto a presença constante do Senhor na vida dos que nele confiam. Mais que um poema devocional, o Salmo 91 é uma declaração de fé na providência divina, que livra, guarda e honra os que permanecem fiéis ao seu nome.
Origem histórica e autoria do Salmo 91
A autoria do Salmo 91 permanece objeto de debate entre estudiosos. Embora o texto não traga identificação explícita, a tradição judaica o associa a Moisés, pela afinidade temática com o Salmo 90, que lhe é atribuído. Ambos compartilham uma visão de Deus como refúgio eterno diante das tribulações humanas, sugerindo uma origem comum e uma teologia de confiança em meio à adversidade.
Outra corrente, predominante na tradição cristã, atribui o salmo a Davi, em razão de seu tom poético e militar, coerente com o contexto de batalhas e perseguições que marcaram sua vida. Independentemente da autoria, a composição reflete um período em que o povo hebreu buscava segurança espiritual diante da instabilidade política e do exílio babilônico (século VI a.C.) ou logo após o retorno a Jerusalém.
A linguagem de guerra, peste e destruição utilizada pelo salmista não deve ser lida apenas de forma literal, mas como metáfora das forças do mal e das crises coletivas enfrentadas por Israel. Assim, o texto assume dimensão universal, tornando-se oração nacional por proteção divina e, posteriormente, expressão pessoal de fé diante do sofrimento humano.
O uso litúrgico do Salmo 91 remonta às práticas judaicas do Segundo Templo e se estendeu à tradição cristã primitiva. Ele é citado nos Evangelhos de Mateus (4:6) e Lucas (4:10-11), quando Satanás tenta Jesus no deserto utilizando suas próprias palavras — um episódio que revela o reconhecimento de sua autoridade espiritual e a força simbólica que o texto alcançou ao longo dos séculos.
O Salmo 91 é uma das mais sublimes expressões da fé bíblica. Sua força reside na fusão entre a poesia espiritual e a teologia da confiança. É um hino de refúgio e fidelidade — um cântico de quem, em meio à ameaça e ao medo, encontra repouso sob o olhar do Altíssimo. A tradição judaico-cristã reconhece nele uma síntese da experiência espiritual: a comunhão constante com Deus, que protege, livra e exalta os que nele confiam.
O que diz o Salmo 91
1. O refúgio no Altíssimo — habitar na presença divina (versos 1–2)
O salmista inicia com um retrato da alma que vive sob o amparo de Deus: “Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo à sombra do Onipotente descansará.”
Habitar é verbo de permanência, não de passagem. Indica uma relação contínua, uma morada espiritual construída na fé e sustentada pela confiança. O fiel não apenas busca Deus em tempos de necessidade, mas faz d’Ele o seu lar.
A “sombra do Onipotente” é símbolo da proximidade divina, evocando o abrigo do deserto — um refúgio contra o calor da provação. Quando o salmista proclama “Ele é o meu Deus, o meu refúgio e a minha fortaleza”, confessa não uma teoria, mas uma experiência: Deus é força e abrigo porque já o foi em meio ao perigo.
2. Libertação e proteção espiritual — domínio de Deus sobre o mal (versos 3–6)
O texto passa do repouso para a ação protetora: “Ele te livrará do laço do passarinheiro e da peste perniciosa.”
O “laço” representa armadilhas morais e espirituais — o engano, a corrupção, o pecado disfarçado de virtude. Já a “peste perniciosa” abarca tanto os males físicos quanto as forças destrutivas que assolam o mundo: epidemias, injustiças, violências e temores coletivos.
As imagens da “noite” e do “dia” reforçam a abrangência do amparo divino. Nem o pavor invisível da escuridão nem a seta visível da guerra escapam ao poder de Deus. O medo é desfeito pela certeza de Sua presença contínua.
3. A fidelidade divina como escudo — ternura e firmeza (verso 4)
“Ele te cobrirá com as suas penas, e debaixo das suas asas te confiarás.”
Aqui, a figura muda de guerreiro para mãe: Deus é comparado a uma ave que protege os filhotes. A imagem transmite calor e segurança, mas também disciplina e cuidado.
A fidelidade divina — emet em hebraico — é chamada de “escudo e broquel”, indicando proteção em duas frentes: o escudo grande que cobre o corpo e o broquel pequeno que defende nos combates próximos. É uma metáfora perfeita para a defesa total de Deus sobre os que se abrigam em Sua verdade.
4. Vitória espiritual sobre o mal — o justo em meio à destruição (versos 7–13)
O salmista contempla o cenário da calamidade: “Mil cairão ao teu lado e dez mil à tua direita, mas não chegará a ti.”
Trata-se de uma visão simbólica do caos humano — guerras, pestes e injustiças — em que o fiel permanece em pé, não por imunidade física, mas por integridade espiritual.
Os inimigos — o leão e a serpente — representam as duas faces do mal: a violência aberta e a astúcia oculta. Pisá-los é mais do que vencer; é restaurar a ordem que o mal tentou corromper. Essa passagem ecoa Gênesis 3:15 e anuncia a vitória definitiva do bem sobre a serpente do engano.
Os anjos, mensageiros da vontade divina, são aqui guardiões: “Aos seus anjos dará ordem a teu respeito.” Essa promessa simboliza a vigilância constante de Deus sobre os que trilham o caminho da justiça.
5. A voz divina — amor, presença e plenitude (versos 14–16)
A última parte muda de voz: Deus mesmo fala. É um raro e majestoso momento de diálogo direto na poesia dos Salmos.
“Porque tão encarecidamente me amou, também eu o livrarei; pô-lo-ei em retiro alto, porque conheceu o meu nome.”
O amor, aqui, é entendido como fidelidade e conhecimento — não afeto vago, mas adesão profunda ao caráter de Deus.
A tríplice promessa divina encerra o salmo com perfeição teológica:
- Presença: “Estarei com ele na angústia.” Deus não promete ausência de dor, mas companhia redentora.
- Libertação: “Livrá-lo-ei e o glorificarei.” O sofrimento se torna caminho de elevação.
- Plenitude: “Fartá-lo-ei com longura de dias e lhe mostrarei a minha salvação.” A salvação, aqui, não é apenas livramento terreno, mas comunhão eterna.
Fé como resistência espiritual
O Salmo 91 é uma das mais intensas expressões da espiritualidade bíblica. Seu texto, denso e simbólico, descreve a trajetória da alma que atravessa o medo e a dor até alcançar o repouso na presença divina. É, por assim dizer, uma cartografia da fé, onde cada versículo marca um ponto de passagem entre a vulnerabilidade humana e a confiança absoluta em Deus.
A mensagem central é inequívoca: a segurança do justo não está na ausência do perigo, mas na presença de Deus. O salmista não ignora a realidade do mal — o terror noturno, a peste, a guerra —, mas afirma que há um refúgio acima de todas as ameaças. Assim, a fé torna-se resistência: não fuga, mas permanência. É uma fidelidade que se mantém firme em meio ao caos, sustentada pela convicção de que o divino habita também o sofrimento e o transforma em caminho de redenção.
O poder do Salmo 91 está em unir realismo e esperança. Ele não promete imunidade, e sim amparo; não afasta o mal, mas o submete à soberania de Deus. Essa visão o tornou atemporal — recitado por soldados em trincheiras, enfermos em leitos e crentes perseguidos por sua fé. Em todos esses contextos, a leitura do salmo funciona como ato de resistência espiritual e psicológica, uma reafirmação de sentido diante do absurdo.
Na tradição cristã, o texto é interpretado como prefiguração da figura de Cristo, o “Justo protegido”, que enfrenta a tentação, o sofrimento e a morte, e triunfa não pela força, mas pela obediência e confiança total no Pai. O salmo, portanto, não apenas consola: ele educa o espírito para a coragem, ensinando que a fé não é negação do perigo, mas sua transcendência.
Sua atualidade é incontestável. Em um mundo marcado por medo, incerteza e solidão, o Salmo 91 recorda que a verdadeira fortaleza está no vínculo interior com o sagrado. Ele fala à condição humana permanente — o desejo de proteção, a busca por sentido e a esperança de que o amor divino é o abrigo último contra todas as tempestades.
Íntegra do Salmo 91
(texto literário e fiel ao original hebraico)
Salmo 91 – O Refúgio do Altíssimo
1 Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo
e descansa à sombra do Onipotente,
2 dirá ao Senhor:
Tu és o meu refúgio e a minha fortaleza,
o meu Deus, em quem confio.
3 Ele te livrará do laço do passarinheiro
e da peste destruidora.
4 Ele te cobrirá com as suas penas,
e debaixo das suas asas encontrarás abrigo;
a sua fidelidade será teu escudo e proteção.
5 Não temerás o terror da noite,
nem a flecha que voa de dia,
6 nem a peste que se move nas trevas,
nem a mortandade que assola ao meio-dia.
7 Mil cairão ao teu lado,
e dez mil à tua direita,
mas tu não serás atingido.
8 Apenas com os teus olhos contemplarás
e verás o castigo dos ímpios.
9 Porque disseste: “O Senhor é o meu refúgio”,
e fizeste do Altíssimo a tua morada,
10 nenhum mal te atingirá,
nem praga alguma chegará à tua tenda.
11 Porque aos seus anjos dará ordens a teu respeito,
para que te guardem em todos os teus caminhos.
12 Eles te sustentarão em suas mãos,
para que não tropeces em pedra alguma.
13 Pisarás o leão e a cobra,
calcarás aos pés o leão forte e a serpente.
14 Porque ele me ama, diz o Senhor, eu o livrarei;
pô-lo-ei em lugar alto, porque conhece o meu nome.
15 Ele me invocará, e eu lhe responderei;
estarei com ele na angústia,
livrá-lo-ei e o glorificarei.
16 Saciá-lo-ei com longura de dias
e lhe mostrarei a minha salvação.
*Carlos Augusto, jornalista, cientista social e diretor do Jornal Grande Bahia.
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