Um gesto simbólico da presidente do Superior Tribunal Militar (STM), ministra Maria Elizabeth Rocha, ao pedir perdão às vítimas da ditadura militar (1964–1985), gerou uma crise interna sem precedentes na mais antiga corte judicial do país. O pedido foi feito no sábado (25/10/2025), durante cerimônia ecumênica na Catedral da Sé, em São Paulo, em memória do jornalista Vladimir Herzog, morto sob tortura em 1975.
“Peço perdão a todos que tombaram e sofreram lutando pela liberdade no Brasil”, afirmou a ministra, acrescentando que a Justiça Militar da União também cometeu “erros e omissões judiciais” que favoreceram o regime autoritário. O público aplaudiu de pé. Entre os presentes estavam familiares de vítimas, juristas e o ex-ministro José Dirceu, cuja reação positiva à fala gerou desconforto dentro do tribunal.
A fala que provocou reação: “Sugiro estudar mais a história do tribunal”
A resposta veio dias depois, em tom duro e carregado de ironia. Durante sessão pública do STM na quinta-feira (30), o ministro Carlos Augusto Amaral Oliveira, oficial da Aeronáutica indicado à Corte em 2024, pediu a palavra para registrar formalmente sua “discordância integral” quanto ao conteúdo e à forma do pronunciamento da presidente.
“Venho manifestar minha preocupação com o recente pronunciamento de Vossa Excelência, Senhora Presidente, em evento público, quando, investida na qualidade de chefe da Justiça Militar da União, pediu perdão a inúmeras pessoas por eventos ocorridos na história do país.”
O ministro fez questão de afirmar que não se tratava de censura, mas de repúdio institucional: “Não cabe à Presidência falar em nome do plenário em temas que nada têm a ver com as competências constitucionais deste tribunal. Registro, portanto, que não outorguei tal mandato, nem reconheço essa delegação.”
Em outro trecho de sua fala, Amaral Oliveira questionou o mérito do gesto:
“Esse tipo de manifestação, feita em nome da Justiça Militar, em nada agrega pela superficialidade e abordagem política. O evento, que se dizia ecumênico, tornou-se, na verdade, um ato político.”
O ministro prosseguiu em tom de provocação:
“Embora reafirme que não há censura de minha parte, sugiro à ministra estudar um pouco mais da história do tribunal antes de opinar sobre o período histórico ao qual se referiu e sobre as pessoas a quem pediu perdão.”
Na sequência, acrescentou:
“Essa liberdade de expressão que lhe garanto é algo que, confesso, não vejo muito nessa turma que é representada nessas falas dela aí.”
O plenário reagiu em silêncio, enquanto o ministro insistia que sua manifestação fosse registrada em ata. “No futuro, esses posicionamentos — dos quais discordo — serão objeto de estudo dos arqueólogos da história. Que saibam que não houve unanimidade.”
Fontes internas relataram que a fala foi recebida como uma tentativa de disciplinar publicamente a presidente, algo inédito no colegiado. Parte dos ministros considerou a intervenção desrespeitosa, enquanto outros a viram como afirmação de independência da ala militar da Corte diante de uma postura vista como “politizada”.
A primeira mulher a presidir o STM e as divisões na Corte
A ministra Maria Elizabeth Rocha, jurista e professora de Direito Constitucional, foi eleita presidente do STM em 2024, tornando-se a primeira mulher a chefiar a corte em mais de 200 anos de história. Sua eleição foi marcada por resistência entre ministros oriundos das Forças Armadas, que chegaram a cogitar romper a tradição de rodízio para impedir sua ascensão ao cargo.
Em nota oficial divulgada nesta sexta-feira (31), a presidente reafirmou suas palavras:
“Não tenho nada a acrescentar sobre meu pronunciamento na Catedral da Sé. O que eu tinha a dizer foi dito lá. Numa democracia, as dissidências e opiniões contrárias devem ser ouvidas e toleradas.”
A ministra evitou comentar as declarações do colega, mas aliados próximos afirmam que não houve improviso em seu discurso — a fala foi revisada previamente e inspirada em princípios de justiça transicional, como o reconhecimento institucional das violações do passado.
Memória, hierarquia e a disputa pelo legado da Justiça Militar
O episódio reacende o debate sobre o papel da Justiça Militar durante a ditadura. Documentos da Comissão Nacional da Verdade (2014) apontaram que o tribunal legitimou processos baseados em confissões obtidas sob tortura, e serviu como instrumento jurídico da repressão. A fala de Maria Elizabeth foi, portanto, um raro gesto de autocrítica institucional — gesto que, para parte do corpo militar, representa “revisão política” da história.
O ministro Amaral Oliveira, por sua vez, buscou reafirmar a autonomia histórica da Justiça Militar e o direito à “liberdade de opinião” dentro da Corte. No entanto, sua crítica pública à presidente evidencia o quanto as disputas de memória ainda dividem as instituições que herdaram o legado do regime de 1964.
Choque entre duas visões
A tensão entre a ministra Maria Elizabeth e o ministro Amaral Oliveira simboliza o choque entre duas visões de Estado: uma que busca conciliar as Forças Armadas com o passado autoritário, e outra que se recusa a revisitar erros sob o argumento de preservar a honra institucional. Ao sugerir que a presidente “estude mais a história”, o ministro inverte o sentido da crítica — o verdadeiro estudo da história é o que permite reconhecer injustiças e impedir sua repetição.
O episódio revela um paradoxo persistente na relação entre memória e poder: enquanto a sociedade civil demanda verdade e reparação, setores da Justiça Militar ainda operam sob a lógica de silêncio e autojustificação. Nesse sentido, o perdão pedido por Maria Elizabeth — mais do que um ato simbólico — torna-se um divisor de águas entre o passado que insiste em permanecer e o futuro que exige transparência.
*Com informações da Revista Veja e Folha de S.Paulo.
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