O consumismo exagerado deve ser evitado. Quando o Natal se reduz à troca mecânica de presentes, perde-se o essencial: a renovação interior. No entanto, o gesto natalino que nasce do desprendimento, do olhar atento ao outro e da disposição sincera de compartilhar é, em essência, abençoado por Deus. Não pelo valor material envolvido, mas porque se ancora na caridade — virtude central tanto no cristianismo tradicional quanto no espiritismo kardecista.
Em O Livro dos Espíritos, Allan Kardec ensina que a lei de sociedade é uma lei natural, inscrita na própria condição espiritual do ser humano. O homem não foi feito para o isolamento. Ele progride pela convivência, pelo auxílio mútuo e pela experiência compartilhada. A solidariedade, portanto, não é um adorno moral do Natal: é um dever espiritual permanente.
A solidariedade reconforta porque toca regiões profundas da alma. Nem sempre conseguimos atender a todos os que precisam, nem alcançar aqueles que fazem parte da nossa querência mais íntima. Ainda assim, cada gesto sincero — uma palavra, uma presença, um telefonema — alivia a dor silenciosa da solidão, sentimento que, vez por outra, bate à nossa porta mesmo quando estamos cercados de gente.
As festas juninas, em sua alegria simples, ilustram bem essa dimensão humana da convivência. Com um chapéu de palha e uma roupa singela, rasgada de brincadeira, assumimos a igualdade essencial entre as pessoas. Ali, não há hierarquias rígidas nem vaidades excessivas. Há encontro, pertencimento e comunhão — valores profundamente cristãos, ainda que vividos de forma lúdica.
A solidão, contudo, tornou-se um dos grandes paradoxos do século XXI. Nunca estivemos tão conectados tecnologicamente e, ao mesmo tempo, tão distantes afetivamente. Cercados por multidões disformes, muitas vezes não nos reconhecemos nelas. Queremos salvar o mundo, resolver grandes problemas coletivos, mas deixamos escapar o que está ao alcance das mãos: um abraço, um aperto de mão, uma escuta atenta.
Kardec é direto ao afirmar que o isolamento absoluto é contrário à lei natural, porque impede o exercício do amor e da fraternidade. Já o catolicismo, desde o Gênesis, ecoa a mesma verdade: “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2,18). Trata-se de uma convergência doutrinária profunda, que encontra no Natal sua expressão mais simbólica.
O nascimento de Cristo é, antes de tudo, um chamado à aproximação. Deus se faz homem para caminhar entre os homens. O presépio é uma cena de convivência: família, pastores, viajantes, todos reunidos em torno de uma mesma esperança. O Natal não celebra o isolamento virtuoso, mas a presença, a encarnação, o encontro.
Não por acaso, diversos países passaram a tratar a solidão como questão social e de saúde pública. O Reino Unido desenvolveu programas de inter-relacionamento para pessoas isoladas. A Coreia do Sul criou o projeto SOS Solidão. No Japão, o fenômeno conhecido como Hikikomori mobilizou políticas públicas para resgatar indivíduos que se afastaram completamente do convívio social. Espanha e Estados Unidos investiram bilhões em iniciativas semelhantes.
Ainda assim, a solidão não se resolve apenas com recursos financeiros ou políticas estatais. Ela está profundamente ligada ao estilo de vida, às escolhas cotidianas e à disposição individual para o encontro humano. Muitas vezes, o remédio está mais perto do que se imagina.
Há histórias simples que revelam verdades profundas. Um homem, impossibilitado de viajar para passar o Natal com familiares, publicou um anúncio oferecendo-se para pequenos reparos domésticos. Recebeu inúmeras ligações — não de quem precisava de encanador, mas de pessoas que só queriam ouvir uma voz. Daquele gesto nasceu o projeto SOS Vida. Ficou claro que, em muitos casos, o que falta não é serviço, mas companhia.
As tecnologias ajudam, mas não substituem o contato humano. Para alguns, ampliam a comunicação; para outros, aprofundam o isolamento. Mergulhados em fluxos incessantes de informações efêmeras, consumimos conteúdos que não preenchem o vazio de um conforto duradouro. A alma, ensina o espiritismo, não se satisfaz com estímulos passageiros; ela busca sentido, vínculo e permanência.
Aulas de dança, grupos musicais, encontros culturais, rodas de conversa, dança de salão — tudo isso cria pontes entre pessoas com afinidades. Muitas vezes, não é preciso gastar muito dinheiro, mas apenas movimentar-se em direção a espaços onde o encontro ainda é possível.
Neste Natal, ligue para amigos. Envie mensagens. Compartilhe. Participe. Pequenos gestos têm grande valor espiritual. Kardec lembra que cada ato de benevolência gera consequências morais, não apenas para quem recebe, mas também para quem pratica.
Somos seres sociais por natureza. Precisamos interagir o tempo todo. O ermitão existe, mas é exceção. E mesmo ele, segundo o espiritismo, nunca está verdadeiramente só. Vivemos cercados por presenças espirituais, por laços invisíveis que nos acompanham e nos sustentam.
O catolicismo reafirma essa mesma certeza ao proclamar, no Natal, que Deus caminha conosco. O espiritismo aprofunda essa compreensão ao lembrar que nunca estamos abandonados no universo. Sempre há alguém a velar por nós — aqui ou além.
Que os sinos natalinos não sejam apenas ruído festivo, mas chamado à consciência. Natal é encontro, é caridade em movimento, é espiritualidade vivida no cotidiano. Ontem, hoje e todos os dias do ano.
Sobre o autor
Advogado, jornalista, escritor e professor, Joseval Carneiro (joseval@plenus.net) reúne sólida trajetória no serviço público e na vida intelectual baiana. Delegado de Polícia aposentado, com especialização nos Estados Unidos, exerceu funções de direção no Detran do Distrito Federal e no Conselho Estadual de Trânsito da Bahia. Integra a Associação Bahiana de Imprensa (ABI) e ocupa a vice-presidência da Academia de Cultura da Bahia, destacando-se por sua atuação jornalística, produção literária e dedicação às instituições culturais.
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