A Nuvem de Nery | Por Luiz Holanda

Capa do livro 'A Nuvem: o que ficou do que passou', obra de autoria do jornalista Sebastião Nery.
Capa do livro 'A Nuvem: o que ficou do que passou', obra de autoria do jornalista Sebastião Nery.

O extraordinário jornalista, cronista político, deputado, adido cultural, advogado, professor e escritor, Sebastião Nery, escreveu inúmeros artigos, alguns poemas e 16 livros sobre a vida política do Brasil nesses últimos cinquenta anos. Durante esse tempo, viveu intensamente, como observador e protagonista, registrando em seus escritos tudo o que viu, viveu e ouviu. Em “A Nuvem”, livro autobiográfico de sua profícua e fecunda existência, relata fatos e acontecimentos como um oficial de registro de eventos. Sentinela dos acontecimentos, é insuperável no seu gênero e estilo.

O livro, misto de recordações e manifesto político sentimental, narra a história de sua vida através de uma nuvem, que lhe apareceu em 1944, quando, deitado sob uma jaqueira em sua cidade natal, Jaguaquara, interior da Bahia, a viu pela primeira vez.  A partir daí bastou segui-la, abrindo para si as janelas do mundo, extraindo de cada acontecimento o que havia de mais relevante, escavando as cavernas do passado e descobrindo, como Sartre, que as relações profundas entre os homens são criadas pela violência.

Temperamento irrequieto e perquiridor, Nery conta a história do Brasil no tempo em que testemunhou seus melhores momentos, resgatando a memória dos fatos e descrevendo os comportamentos e as atitudes dos personagens de escol, inclusive dos que não tinham a mesma dimensão dos que faziam a história.

Ao destacar os acontecimentos em forma de narrativa, lembra-nos Weyne, pois “a história é uma narrativa de eventos, sendo o restante apenas fatos”. Nessa trilha, ao narrar os acontecimentos mais marcantes da época, descreve-os percorrendo a longa rodovia de suas lembranças, deixando pegadas nas areias do tempo, e sempre andando na frente, pois são “dos pés dos que vão na frente que as borboletas se levantam”.

Indiscutivelmente autêntico em suas decisões e posições, suportou sofrimentos, incompreensões, calúnias e prisões, tudo com estoicidade e amor à justiça. O saber o dignifica; a mansidão o caracteriza. Mesmo frágil e franzino,  seu caráter é tão forte quanto as baraúnas sertanejas, que jamais se dobram diante dos vendavais.

A Nuvem é uma obra que pode ser apreciada tanto pelo seu conteúdo histórico quanto pelo seu fino sabor literário. “Episódios prosaicos narrados no livro como o primeiro contato com a luz elétrica aos quatro anos ou a descoberta do amor – além de outros como o encantamento juvenil pelo comunismo e a prisão sob a ditadura”-, foram descritos como lições de vida, utilizadas por ele para transmitir seus pensamentos.. Nery retrata os personagens da época (Juscelino, Brizola, Collor de Mello e outros) levando-os consigo em sua nuvem.

Sobre a política, disse que ela “tem uma coisa péssima: ela atrai demais os maus, porque o poder é quem manda e quem manda no poder é a política. Quando instrumento do mal, ela duplica o mal”.

Como se sabe, toda nuvem é visível e pode ter cores diferentes, indo do branco ao cinza escuro. As formas variam de acordo com a velocidade do vento e a quantidade de água que possuem. Segundo os especialistas, é formada de gotas de água ou de cristais de gelo. Também pode ser formada pela transpiração humana.

Se essa última afirmação for verdadeira, a nuvem de Nery pode ter sido formada por sua transpiração. Possuindo uma versatilidade que chega às raias da genialidade, é sutil, original, irônico e intuitivo, além de ser, também, um escafandrista de almas. Sua nuvem traz consigo o rosto de Jaguaquara, que devia figurar na capa do livro, escrito enquanto ele a seguia, transportando para o hoje o resgate histórico do ontem.

*Luiz Holanda, advogado e professor universitário.

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