No livro ‘A inveja nossa de cada dia: como lidar com ela’, publicada em 2001, dedicamos um capítulo à Autoinveja, teoria (Self-Envy) que o médico, psiquiatra, psicólogo e psicanalista canadense, nascido na Venezuela, Rafael E. Lopez-Corvo(1934- ) desenvolveu, na qual explica as razões que levam personalidades altamente criativas a promoverem a própria destruição. Segundo ele, a compreensão da autoinveja é indispensável para o entendimento de algumas posturas emocionais derivadas do inconsciente. Trata-se, portanto, segundo pensa, de um instrumento útil para examinar a arquitetura de nosso mundo interior. Só quando compreendemos que nosso mundo interior é formado pelas múltiplas e complexas interações dessas diferentes e polivalentes partes do nosso ‘eu’, é que passamos a compreender porque um desalentado aspecto de nós é capaz de invejar outro elemento interno, criativo ou idealizado. Do mesmo modo que as personagens se movimentam em nossos sonhos de modo autônomo, fazendo coisas que não queremos, porque tememos ou nos são desagradáveis, estas partes despeitadas de nosso eu agem com autonomia em relação àqueloutras cuja criatividade invejam. É como se fossemos um maestro regendo uma orquestra em que os nossos sentimentos são os instrumentistas. O surdo, o baixo ou o pandeiro, eventualmente, invejosos do brilho solitário dos solos dos violinos ou das clarinetas, perturbam sua execução, danificando-os. Lopez-Corvo aponta como fontes de sua teoria o pensamento psicanalítico de gente como Aristóteles, Freud, Otto Rank, Melanie Klein, Hanna Segal, Donald Meltzer, Joseph Berke.
A autonomia desta máfia dos sentimentos se processaria de modo semelhante à dos “atos falhos” que, exprimindo nosso desejo inconsciente, escapam ao controle de nosso comando racional. O vizinho disse “meus parabéns”, à viúva, quando queria dizer “meus pêsames”, demonstrando, assim, involuntariamente, sua antipatia pelo morto. O rapaz chamou a namorada de “mamãe”, verbalizando seu complexo de Édipo. O presidente disse, na abertura do seminário, “declaro encerrada a sessão”, revelando seu desgosto pela realização do evento, quando deveria ter dito “declaro aberta a sessão”, e assim por diante.
Aos exemplos citados por López-Corvo da ação desenvolta da autoinveja, como a morte prematura dos Papas João Paulo I e Papa Alexandre de Medici, poucos dias depois de proclamados, podemos acrescer a mortal septicemia que matou o Presidente Tancredo Neves, precisamente no dia de sua posse no cargo tão longamente anelado de presidente da República. Igualmente, a autoinveja explicaria a cegueira parcial de James Joyce, autor de Ulysses, considerado o maior romance do Século XX, ou a cegueira total do escritor argentino Jorge Luis Borges. A surdez de Ludwig von Beethoven pertenceria à mesma linhagem da autoinveja. López-Corvo, apoiado na abundante casuística de sua clínica psicanalítica, aceita que apenas uma percentagem desses casos seja atribuída ao destino ou ao acaso. Não residiria aí a explicação dos conflitos mentais experimentados por ilustres alcoólatras, drogados, suicidas ou portadores de outros sentimentos autodestrutivos, como Van Gogh, Baudelaire, Coleridge, Poe, Lord Byron, Robert Louis Stevenson, Conan Doyle, Schumann, Virginia Woolf, Aldous Huxley, Hemingway, Vinícius de Morais, Baden Powell, Noel Rosa, Nelson Rodrigues, João Ubaldo Ribeiro, Maradona, Heleno de Freitas, Steve Jobs, Garrincha, Bjorn Borg, e tantos outros?
Em outras palavras: a auto-inveja resulta do ataque agressivo e direto de impulsos invejosos, incessantemente desferidos por uma parte narcísica, contra a parte boa e criativa do ‘eu’. Os gregos simplificaram o entendimento desta multifária vocação individual, atribuindo aos indivíduos várias almas, cada uma delas responsável por uma tendência. Dante, refletindo o pensamento católico, condenou, na Divina Comédia, “aquela errônea crença que afirma haver em nós uma alma dentro de outra alma embutida”.
Em suma: a autoinveja seria atributo de uma gang mafiosa, integrada por maus sentimentos, cujo propósito central é o de controlar as partes boas do ‘eu’, tiranizando-as através de ameaças, coerção, manipulação, sedução, fraude, logro e assim por diante, conduzindo ao que se denomina autodestruição. É o grande obstáculo que os indivíduos criativos precisam superar para serem felizes. A esse desejo inconsciente de morrer e de autodestruição a psicanálise clássica denomina “pulsão de morte” e “neurose de fracasso”.
Essa longa digressão é feita para especular com o leitor sobre se essa teoria da autoinveja seria de alguma valia para explicar muitas coisas que acontecem na vida política brasileira.
*Joaci Góes, advogado, jornalista, empresário, ex-deputado federal constituinte e presidente do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia (IGHB).
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