Sören Kierkegaard: Inveja como fonte de ideologias que atropelam o mérito, 5 | Por Joaci Góes

Sören Kierkegaard: Inveja como fonte de ideologias que atropelam o mérito, 5

Para a Magnífica Anaci Bispo Paim!

Michel Foucault (1926-1984) sustenta a tese segundo a qual os valores dominantes, num determinado momento histórico, consolidam-se e desaparecem por surtos axiológicos, sem qualquer motivo aparente (Les Mots et les Choses, 1985). No bojo dessa tendência, o marxismo, inspirado na inveja, incorporou, à sua pregação e luta, a desigualdade econômica. Essa visão equivocada de Adam Smith, incorporada por Marx, encontra-se presente nas teses de muitos defensores de políticas igualitárias, sendo que o poeta trágico ateniense, Agaton, (448-401a.C), êmulo de Eurípides, parece ter sido a fonte primeira da suposição que vê na desigualdade a causa essencial da inveja, ao versejar:

“Não haveria inveja no coração dos homens se todos nascessem igualmente dotados”.

Afora isso, Adam Smith, coerente com o pensamento estoico, observa que “a prudência nos aconselha a conduzir nossa prosperidade com moderação e nos ensina a evitar a inveja, provocada, acima de tudo, pelo êxito”. Conclui, reconhecendo que a inveja, intrinsecamente destrutiva, se origina da sensação de inferioridade e que só os libertos deste sentimento serão capazes de partilhar da alegria do próximo (Teoria dos Sentimentos Morais).

O dinamarquês Sören Kierkegaard (1813-1855) foi o fundador da filosofia existencialista. No fim de sua breve existência de quarenta e dois anos, atacou a Igreja da Dinamarca por sua secularização. Ao invés de concentrar suas reflexões sobre a inveja, em um ou mais trechos de sua obra, Kierkegaard tratou-a esparsamente, para explicar o comportamento humano e o seu próprio, a partir da frequência e da intensidade da presença invasiva desse sentimento.

O predomínio dessas emoções inferiores conduziria ao imobilismo das energias transformadoras, traumatizadas pela racionalização que coloca no mesmo plano o bem e o mal. Segundo ele, a inveja, que deriva da reflexão inconsciente, esteriliza a vontade e a força das pessoas, particularmente, nas pequenas e ou atrasadas cidades onde prospera com desenvoltura, criando uma malha de influência recíproca de cuja abrangência tentacular ninguém escapa.

Os mesmos fatores de proximidade física, material e intelectual, encontradiços nas pequenas comunidades, explicariam a forte presença da inveja nos meios acadêmicos. Sem a madura compreensão do que é a inveja, não há como explicar o comportamento de certas pessoas e de certos grupos sociais. Para Kierkegaard, a inveja é uma forma oculta e distorcida de admiração que nada de bom constrói.

Quando a admiração saudável que produz emulação se transforma em inveja, a emulação, que é construtiva, cede lugar à destrutibilidade inerente à inveja. Kierkegaard leciona em seu livro The Sickness Unto Death:

“Inveja é admiração oculta. Um admirador que percebe que a devoção não o fará feliz preferirá invejar aquilo que admira. Passará a usar uma nova linguagem para dizer que não tem valor o objeto de sua admiração, porque é tolo, ilusório, perverso e espalhafatoso. Admiração é a entrega feliz; inveja é autoafirmação infeliz”.

Ao afirmar que quem busca despertar inveja nos outros, seja por autopromoção, imodéstia ou outro fator qualquer, é, igualmente, invejoso, Kierkegaard parodiou o pensamento de Aristóteles, expresso na Retórica, segundo o qual “aqueles que buscam honrarias são mais invejosos do que os indiferentes a honrarias”.

Menciona o ostracismo grego, caracterizado pela condenação ao exílio de pessoas de reconhecido prestígio e brilho, como mecanismo catártico da inveja acumulada nas massas, incomodadas com o virtuosismo de personalidades emblemáticas dos melhores valores sociais. O ostracismo ateniense, por isso, seria um sinal de distinção, ainda que de feição patológica. Para ele, este tipo de inveja, aberta e ostensiva, seria aceitável, em oposição à inveja secreta, dissimulada, covarde, inconfessável e destrutiva.

Kierkegaard foi um dos primeiros pensadores a condenar o uso da inveja social latente como matéria-prima da ação política, por promover o nivelamento por baixo, além de envolver em conflitos sociais pessoas não invejosas, mediante a ameaça expressa ou subliminar do slogan: “Quem não inveja conosco está contra nós”, como a que viceja em certos meios acadêmicos. Seus profundos estudos representam marcante contribuição pessoal para a formulação de uma teoria social e filosófica sobre a inveja. Ninguém, em tão curta vida, produziu uma obra literária e filosófica tão densa.

No próximo artigo, ouviremos Nietzsche!


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