A educação pública brasileira vive um paradoxo preocupante. De um lado, a Constituição Federal consagra a educação como um direito social fundamental, dever do Estado e da família, e interesse público indisponível. De outro lado, greves recorrentes de servidores da educação – professores, técnicos e funcionários – interrompem frequentemente as aulas em escolas e universidades. O resultado é um ciclo de instabilidade que compromete a continuidade do ensino e afeta principalmente os estudantes mais vulneráveis.
Nesta reportagem editorial do Jornal Grande Bahia, produzida pelo jornalista e cientista social Carlos Augusto, analisa-se como as paralisações impactam a qualidade do ensino público, são relatados casos recentes de greves em diferentes redes de ensino, examina-se o posicionamento jurídico dos tribunais brasileiros sobre o tema e é discutido por que muitos veem essas greves como uma “violência” contra a classe trabalhadora que depende da escola pública. Também são resgatados fundamentos históricos e constitucionais que sustentam a educação como um direito pétreo e permanente.
Impacto das Greves na Continuidade e Qualidade do Ensino
As consequências das greves na educação pública se fazem sentir diretamente na aprendizagem dos alunos e na rotina das famílias. A interrupção prolongada das aulas quebra o ritmo de ensino, dificulta o cumprimento do calendário escolar e geralmente precisa ser compensada com reposição de aulas – nem sempre de maneira eficaz.
Estudos evidenciam prejuízos concretos no desempenho escolar: uma pesquisa focada na Universidade Federal da Paraíba concluiu que as greves impactaram negativamente o rendimento médio dos estudantes, com redução nas notas em todos os níveis de desempenho. Alunos com maior dificuldade foram os mais afetados, aprofundando desigualdades educacionais. Especialistas alertam que afastamentos prolongados das salas de aula têm efeitos enormes no aprendizado e no desenvolvimento dos estudantes.
Durante uma recente greve dos professores municipais de Belo Horizonte, em 2022, pais e mães relataram preocupação com o retrocesso educacional após dois anos de pandemia.
“A pandemia trouxe um retrocesso no aprendizado dos meus filhos, e a greve dos professores só fortalece isso”, desabafou Carolyne Marques, mãe de duas crianças em fase de alfabetização.
Além do aspecto pedagógico, as paralisações desorganizam a vida familiar: escolas fechadas obrigam responsáveis a buscar alternativas de cuidado ou mesmo a faltar ao trabalho. Uma mãe entrevistada explicou que teve de deixar seu filho de 6 anos com parentes para poder trabalhar e admitiu: “Se isso não estivesse acontecendo, teria que sair do emprego”. Situações assim ilustram como as greves sobrecarregam as famílias trabalhadoras, que dependem da escola pública não apenas para educar, mas também para viabilizar sua jornada de trabalho.
Os danos acadêmicos também se acumulam. Conteúdos deixam de ser ministrados no tempo adequado, e a reposição nem sempre cobre totalmente a perda – frequentemente concentra meses de aula em poucas semanas, comprometendo a absorção do conteúdo. Muitos alunos avançam de ano sem ter aprendido o necessário e enfrentam dificuldades mais adiante, seja nas séries seguintes ou ao tentar ingressar no ensino superior.
“Os alunos que já enfrentam dificuldades terão maiores dificuldades de aprendizagem por não terem visto o conteúdo completo em razão das paralisações”, observa uma análise sobre o tema.
Tais falhas pedagógicas tendem a repercutir ao longo de toda a trajetória escolar, prejudicando especialmente aqueles que não podem pagar reforço escolar ou escolas privadas.
Em resumo, as sucessivas greves produzem:
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Perda de ritmo e defasagem de conteúdo: os calendários letivos são quebrados e retomados tardiamente, gerando atrasos e compressão de matérias.
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Queda no desempenho dos alunos: estudos e relatos indicam redução nas notas e dificuldades de aprendizagem após períodos de greve.
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Desigualdade ampliada: estudantes de baixa renda, sem alternativas fora da escola pública, sofrem mais com a perda de aulas, enquanto alunos de escolas privadas (onde greves são raras) mantêm a continuidade dos estudos.
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Transtornos à vida familiar: pais trabalhadores precisam conciliar seus empregos com crianças fora da escola, muitas vezes recorrendo a terceiros ou arriscando sua renda.
Vale lembrar que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/1996) estabelece a obrigatoriedade de pelo menos 200 dias letivos anuais no ensino básico. Greves prolongadas pressionam as redes de ensino a estender o ano letivo ou sacrificar recessos para cumprir essa meta legal – do contrário, há afronta ao direito do aluno a um mínimo de dias de aula.
Em muitos casos, o segundo semestre letivo se torna mais curto ou sobrecarregado para compensar o tempo perdido no primeiro semestre. Mesmo com reposições, a descontinuidade afeta a qualidade: a aprendizagem não se “recompõe” integralmente apenas com aulas extras, pois o processo educativo exige regularidade e sequência lógica.
Greves Recorrentes: Casos Recentes em Diferentes Redes de Ensino
As greves dos professores da rede estadual de ensino da Bahia têm trazido graves prejuízos para a sociedade.
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Greve de 2012: Iniciada em abril, esta greve estendeu-se por 115 dias, sendo considerada uma das mais longas na história da educação baiana.
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Greve de 2007: Ocorrida entre maio e julho, com duração de 56 dias, afetando significativamente o calendário escolar.
Em Feira de Santana, os professores da rede municipal decidiram, em assembleia realizada em 25 de março de 2025, interromper as atividades nos dias 31 de março e 2 de abril.
A frequência das greves na educação pública brasileira tem chamado atenção. Nos últimos anos, ocorreram paralisações em todos os níveis de ensino público – da educação infantil municipal às universidades federais – revelando um quadro disseminado de abusos por parte de servidores, que objetivam mais privilégios, impondo um padrão de interrupções sucessivas no serviço educacional, que resulta na percepção de que o serviço deve ser entregue ao setor privado, da mesma forma que ocorre com os serviços de saúde.
Levantamento do DIEESE mostra a dimensão do fenômeno: somente no primeiro semestre de 2023, houve 239 greves de servidores públicos municipais em todo o país, das quais 151 (63%) foram deflagradas por profissionais da educação (professores e técnicos da educação infantil e fundamental).
No âmbito estadual, das 67 greves de servidores estaduais registradas no mesmo período, 37 foram na educação, do ensino básico ao superior. Esses números confirmam que a educação lidera as paralisações no setor público.
Nas redes municipais, greves por reajustes do piso salarial do magistério e planos de carreira têm se repetido ano a ano. Em Belo Horizonte (MG), os professores municipais cruzaram os braços em março de 2022 por melhorias salariais, mantendo escolas fechadas por três semanas. No Rio de Janeiro (RJ), uma greve dos docentes municipais no fim de 2024 paralisou as aulas entre 25 de novembro e 6 de dezembro daquele ano. A mobilização buscava barrar mudanças no regime de trabalho propostas pela prefeitura.
Já em cidades do Rio Grande do Norte, como Mossoró, paralisações também ocorreram em 2023, chegando a ser encerradas por ordens judiciais diante do risco de ano letivo perdido. Esses episódios municipais costumam afetar milhares de alunos da educação infantil e fundamental, etapas cruciais para alfabetização e base do aprendizado.
Nas redes estaduais, cenário semelhante. Estados como Rio Grande do Norte e São Paulo tiveram greves de professores recentemente. No RN, os docentes estaduais iniciaram greve em fevereiro de 2023, reivindicando a aplicação integral do reajuste nacional do magistério (14,95%). A paralisação se prolongou por mais de um mês, até que a Justiça determinou a suspensão em razão dos prejuízos aos alunos.
Em São Paulo, os professores da rede estadual aprovaram greve a partir de abril de 2023, cobrando reajustes salariais e melhores condições de trabalho. Embora a duração tenha sido menor, a mobilização paulista sinalizou que mesmo nos estados mais ricos há conflitos que podem levar à interrupção das aulas. Outra frente de paralisação estadual ocorreu no ensino técnico: em agosto de 2023, professores e funcionários de 132 Escolas Técnicas (Etecs) e Faculdades de Tecnologia (Fatecs) estaduais de São Paulo entraram em greve simultaneamente. Essa paralisação ampla no Centro Paula Souza (autarquia que administra as Etecs/Fatecs) ilustrou como os institutos de ensino técnico também estão sujeitos a movimentos grevistas, afetando cursos profissionalizantes de nível médio e superior tecnológico.
No âmbito federal, que abrange as universidades federais e os institutos federais de educação, as greves igualmente têm sido frequentes – e de larga escala. Em 2024, ocorreu uma das maiores greves nacionais da educação federal dos últimos tempos: uma paralisação unificada de professores e técnico-administrativos das universidades federais e institutos federais, iniciada em meados de abril. O movimento atingiu até 62 universidades federais, além de centenas de campi de institutos pelo país, durando cerca de dois meses e meio.
No pico da greve, pelo menos 25 universidades decidiram interromper as atividades acadêmicas, forçando um rearranjo do calendário semestral. Cada instituição precisou posteriormente reorganizar suas aulas para concluir o semestre atrasado e iniciar o seguinte. Essa não foi a primeira grande greve do gênero – já em 2012 os docentes das federais paralisaram por 120 dias, um recorde histórico – mas foi a mais significativa nos anos recentes, evidenciando que mesmo a educação superior pública, frequentada por cerca de 1,3 milhão de estudantes, ainda enfrenta impasses que levam à suspensão total das aulas.
Importante notar que todas essas greves, em maior ou menor medida, comprometem a oferta contínua da educação pública. Se por um lado sindicatos argumentam que as paralisações são último recurso para pressionar governos a valorizar a educação, por outro lado o fato é que milhares (às vezes milhões) de alunos tiveram atividades letivas adiadas ou canceladas nesses episódios.
Em muitos casos, apenas parte das escolas aderiu (como em Niterói/RJ em 2023, onde a prefeitura divulgou que apenas 10% dos docentes pararam), mas em outros a adesão foi majoritária a ponto de fechar quase todas as unidades de ensino (a rede estadual do RN, por exemplo, ficou praticamente toda parada em 2023). Mesmo quando não há 100% de paralisação, a rotina escolar é bastante prejudicada, pois turmas ficam sem professores e o conteúdo não avança.
O Posicionamento dos Tribunais: Direito de Greve vs. Direito à Educação
As greves no setor educacional têm levado o conflito entre o direito de greve dos servidores públicos e o direito à educação da população para o centro dos debates jurídicos. Nos tribunais, em especial nas Cortes superiores, vem se consolidando o entendimento de que a educação – por sua natureza essencial e repercussão social – impõe limites ao exercício do direito de greve. Decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), do Superior Tribunal de Justiça (STJ), do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e de tribunais regionais têm reconhecido a legalidade de intervenções para garantir a continuidade do serviço educacional.
Um marco importante foi o julgamento, pelo STF, do Recurso Extraordinário 693.456, em outubro de 2016. Nessa decisão de repercussão geral, o Supremo validou o corte de ponto de servidores públicos em greve, firmando que a Administração Pública pode descontar os dias parados imediatamente, sem necessidade de decisão judicial prévia, salvo se a greve for motivada por ilegalidade cometida pelo próprio governo. Por 6 votos a 4, os ministros entenderam que não pagar salários durante a greve (com possibilidade posterior de negociar compensação dos dias não trabalhados) é legítimo e não afronta o direito de greve.
Esse posicionamento – aplicado a um caso envolvendo uma fundação de educação técnica do Rio de Janeiro – enviou um recado claro de desestimulo a paralisações prolongadas, pois retira dos grevistas a remuneração do período ocioso. Na prática, desde então, professores e servidores que cruzam os braços já sabem que poderão ter seus vencimentos suspensos durante a greve, tornando o movimento mais custoso para a categoria.
Em outro precedente simbólico, a ministra Cármen Lúcia, do STF, rejeitou em 2014 uma reclamação do sindicato de professores de São Luís (MA) e confirmou a decisão da Justiça estadual que havia declarado ilegal a greve nas escolas municipais daquela capital. Na ocasião, Cármen Lúcia destacou que “este Supremo Tribunal decidiu que o direito de greve submete-se a limitações para não interromper a prestação de serviço público essencial”, concluindo ser juridicamente possível ao Judiciário proibir o exercício abusivo da greve em certas categorias de acordo com a natureza essencial do serviço prestado.
A ministra salientou que, no caso maranhense, houve paralisação de um serviço “essencial, contínuo e indispensável à população” – referindo-se à educação básica – e por isso manteve a decisão que ordenara o retorno ao trabalho.. Essa avaliação deixa claro que, para o STF, a educação pública se enquadra no rol de atividades cuja interrupção não pode ser irrestrita.
Embora a Lei de Greve (Lei 7.783/1989) não liste explicitamente a educação entre os “serviços essenciais” (como faz com saúde, transporte, segurança etc.), o Judiciário vem interpretando a educação como serviço essencial de fato, dada sua previsão constitucional e impacto social.
No âmbito dos tribunais trabalhistas, o entendimento não é diferente quando se trata de assegurar o atendimento à comunidade escolar. O TST, em casos envolvendo instituições de ensino, também tem atuado para coibir abusos. Um exemplo notório ocorreu em 2014, quando a Seção de Dissídios Coletivos do TST declarou abusiva a greve dos professores e auxiliares da PUC-SP, uma universidade particular, por concluir que a paralisação tinha motivação política (contestação da escolha de um reitor) e extrapolava o âmbito trabalhista da negociação.
Embora seja um caso no setor privado, a decisão do TST reforçou a ideia de que greves que não guardam relação direta com condições de trabalho – e que, no limite, prejudicam os alunos sem justificativa trabalhista válida – não encontram amparo legal. Em outras palavras, a justiça trabalhista tem sinalizado que a finalidade da greve importa: movimentos puramente reivindicatórios de salário e carreira são legítimos, mas usar a paralisação como protesto de natureza alheia à relação de trabalho pode ser considerado abuso, especialmente em educação, onde os estudantes seriam penalizados indevidamente.
Os tribunais de Justiça estaduais (competentes para julgar greves de servidores estatutários, como é o caso da maioria dos profissionais da educação básica) repetidamente têm concedido liminares para suspender greves ou impor condições. Em dezembro de 2024, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro atendeu a um pedido da prefeitura carioca e determinou o fim imediato da greve dos professores municipais, que durava poucos dias.
O presidente do TJRJ, desembargador Ricardo Rodrigues Cardoso, fundamentou a decisão afirmando que “as atividades dos servidores da educação são consideradas essenciais, o que, pela lei, limita o exercício do direito à greve”. Além de declarar a ilegalidade da paralisação por falta de aviso prévio e tentativa de negociação, a Justiça fluminense autorizou o município a descontar do salário os dias parados. Esse entendimento – de equiparar a educação a serviço essencial – evidencia a tendência jurisprudencial de proteger a continuidade escolar mesmo sem previsão legal explícita, usando princípios constitucionais como o direito à educação e a proteção da infância e juventude.
Decisões semelhantes ocorreram em diversas unidades da federação. Tribunais têm imposto percentuais mínimos de professores em sala de aula durante greves, sob pena de multas pesadas aos sindicatos. No Distrito Federal, por exemplo, em uma greve de 2017, o TJDFT determinou que 50% dos docentes retornassem ao trabalho para mitigar os efeitos do movimento. O descumprimento ensejaria multa diária de R$ 100 mil ao sindicato. Embora o sindicato alegue ter mantido 75% dos professores em classe (cumprindo a ordem) e questionado posteriormente a execução da multa, o fato é que a liminar ilustrou o cuidado judicial em assegurar atendimento mínimo aos alunos.
Em maio de 2024, numa nova greve dos professores do DF, o mesmo TJDFT considerou “abusiva a deflagração da greve em um serviço de caráter fundamental antes de exauridas as tentativas de negociação”, ressaltando que a educação, apesar de não listada na Lei 7.783/89, é um direito social constitucional e direito público subjetivo garantido na Constituição (art. 6º e art. 208). Ou seja, o tribunal reconheceu explicitamente o caráter fundamental do serviço educacional, reforçando a linha de que esse direito da população deve prevalecer sobre o direito de paralisação dos servidores, quando ambos entram em choque.
No Superior Tribunal de Justiça (STJ), que frequentemente é acionado para questões procedimentais dessas greves (como conflitos de competência ou recursos contra decisões dos TJs), também se observa alinhamento com a proteção ao interesse público educacional.
Em 2023, por exemplo, o STJ suspendeu a execução de uma multa milionária contra o sindicato dos professores do DF, imposta por suposto descumprimento da ordem de manter 50% em sala na greve de 2017 . Mas a decisão do ministro relator não contestou a validade da liminar que exigira a manutenção de aulas – ele apenas considerou plausível a alegação de que o sindicato não descumpriu a ordem (já que a adesão à greve teria sido menor que 50%) e que houve omissão processual a ser examinada.
Em síntese, o STJ não contrariou o mérito da proteção aos alunos, olhando apenas aspectos formais daquele caso. Ademais, o tribunal já fixou entendimento (Tema 544) de que compete à Justiça comum julgar greves de servidores celetistas da administração pública, garantindo que não haja vácuo de jurisdição nesses conflitos.
Ou seja, no plano infraconstitucional, o STJ tem respaldado a intervenção judicial em greves do funcionalismo quando necessário, coibindo abusos e zelando pela continuidade dos serviços públicos essenciais.
Em suma, a jurisprudência brasileira atual equilibra o direito de greve com o direito à educação pendendo para a prevalência deste último quando há colisão direta. O magistério e demais servidores da educação, como trabalhadores, possuem proteção constitucional para reivindicar seus direitos, mas os tribunais têm enfatizado que esse exercício não pode anular o dever estatal de ofertar educação contínua e de qualidade a todos. Frases como “abuso do direito de greve” e “serviço essencial e indispensável” aparecem recorrentemente nos julgados relativos a greves em escolas, sinalizando intolerância do Judiciário com movimentos prolongados ou realizados à revelia das exigências legais (aviso prévio, manutenção de parte do serviço etc.).
O entendimento consolidado pelo STF e seguido pelas demais cortes é de que nenhum direito constitucional é absoluto – e, no caso, o direito de greve dos educadores encontra limite no direito fundamental dos alunos à educação e no princípio da continuidade do serviço público educacional.
Greve na Educação: “Violência” contra a Sociedade Trabalhadora?
Diante dos impactos sociais negativos, ganha força a perspectiva de que a paralisação de serviços educacionais fere os direitos da coletividade, configurando quase uma violência contra a população que depende da escola pública. Essa visão se sustenta no fato de que os prejudicados diretos das greves não são governantes ou burocratas, mas sim os alunos (crianças e jovens) e suas famílias, em grande parte de trabalhadores de média e baixa renda que não têm alternativa educacional fora do sistema público. Cada dia de aula perdido aprofunda a desigualdade: enquanto a elite mantém seus filhos em escolas particulares – onde raramente há greves – as crianças das camadas populares ficam sem aula. Como resultado, aumentam as disparidades de aprendizado entre ricos e pobres.
“As escolas públicas brasileiras são palco de um circo de horrores: […] greves recorrentes e invasões… famílias mais abastadas matriculam seus filhos no ensino privado, esperando salvá-los dessa triste realidade”, descreve duramente uma análise do Instituto Alfa e Beto sobre a debilidade do ensino público.
Embora carregada, a afirmação evidencia o sentimento de muitos pais de que a instabilidade crônica da rede pública os obriga a buscar escape no setor privado, o que nem todos podem custear.
Para a classe trabalhadora, portanto, cada greve significa um duplo golpe. Primeiro, pelo dano educacional aos seus filhos – menos aprendizado, menos assistência escolar, menos chance de ascender socialmente pelo conhecimento. Segundo, pelo transtorno imediato em sua vida: famílias humildes dependem da escola também como um espaço seguro para os filhos enquanto trabalham.
Quando a escola fecha, algumas mães ou pais precisam faltar ao emprego (e podem perder renda ou mesmo o posto de trabalho), ou então improvisar cuidados, às vezes deixando crianças sozinhas ou em situação de risco. Isso configura, na visão de muitos, uma injustiça social.
“Greve de professores atinge com força e rapidez todo o tecido social”, sintetiza um observador, pois seus efeitos se espalham para além do conflito trabalhista em si, penalizando quem não tem envolvimento com a disputa – os estudantes e seus responsáveis.
Não por acaso, promotores e juízes qualificaram greves longas na educação como um atentado ao direito das crianças e adolescentes, que goza de prioridade absoluta no ordenamento jurídico (art. 227 da Constituição e Estatuto da Criança e do Adolescente).
Em diversas ocasiões, o Ministério Público ingressou com ações civis para assegurar a retomada das aulas, argumentando que o direito à educação não pode ser refém de impasses salariais. Nessas ações, sustenta-se que a suspensão prolongada das aulas viola direitos difusos da coletividade estudantil e configura omissão do Estado na garantia do ensino, podendo caracterizar improbidade administrativa se as autoridades não tomarem medidas para reverter o quadro.
Sob a ótica da sociedade, especialmente da parcela trabalhadora, a greve educacional acaba por contradizer a própria missão pública da escola. A escola pública, muitas vezes, é vista como o principal patrimônio do trabalhador para projetar um futuro melhor aos filhos. Quando essas escolas ficam paradas, frustra-se uma expectativa fundamental e reforça-se a sensação de abandono. Nesse sentido, alguns líderes comunitários e sindicais de outras categorias enxergam as greves nas escolas como tiro no pé: enfraquecem a confiança da população nos serviços públicos e criam um mal-estar com o funcionalismo.
Ao invés de angariar apoio popular, greves prolongadas de professores tendem a gerar indignação nos pais e alunos, alienando justamente aqueles que deveriam ser aliados naturais na luta por melhorias na educação.
É importante frisar que esta crítica não ignora a legitimidade das reivindicações dos profissionais de ensino – geralmente lutando por salários dignos, condições de trabalho adequadas e investimentos na educação. O que se debate é o instrumento da greve como meio de pressionar por essas pautas. Há quem defenda formas alternativas de mobilização que não privem os alunos de aulas, como operações-padrão (cumprir estritamente a carga horária mínima, sem atividades extras), passeatas nos horários de contraturno, trabalho com redução de ritmo (“operação tartaruga”) ou outras estratégias criativas.
“A greve é importante, mas é necessário inovar… Não [fazer greve] pela greve. Temos que pensar novas formas de mobilização que sejam mais inclusivas”, propõe o professor e pesquisador Marco Aurélio Santana, especialista em sindicalismo, em entrevista sobre movimentos docentes
Essa sugestão reflete o dilema ético enfrentado pelos educadores: como pressionar o governo sem penalizar os estudantes? Cada vez mais, setores argumentam que a causa da educação deve buscar apoio da sociedade e, para isso, não pode ser percebida como prejudicial à própria sociedade.
Desse modo, qual seja o ângulo de análise, fica evidente que a continuidade do ensino é um valor social incontornável. Quando uma greve a interrompe, mesmo motivada por causas justas, acaba por ferir o interesse coletivo imediato. Daí a afirmação corrente de que “a educação não pode parar” – slogan repetido em campanhas e decisões judiciais – não ser mero chavão, mas sim expressão de uma necessidade real das famílias e do país.
Se a educação é ferramenta de emancipação social, negá-la, ainda que temporariamente, equivale a tolher oportunidades e direitos, sobretudo dos mais pobres. Não surpreende, portanto, que cresça a cobrança para que poderes públicos e servidores da educação alcancem soluções negociadas sem recorrer à paralisação completa das atividades, evitando essa forma de “violência” involuntária contra quem mais precisa da escola.
Educação como Direito Fundamental e Dever Permanente do Estado
A centralidade da educação no Brasil não é obra do acaso, mas resultado de uma construção histórica e constitucional sólida. Desde a Constituição de 1934 – a primeira a dedicar um capítulo específico à educação – este setor é reconhecido como direito de todos e dever do Estado (já naquele texto, o artigo 149 proclamava: “A educação é o direito de todos e deve ser ministrada pela família e pelos poderes públicos…”
A Constituição de 1988 elevou esse patamar, incluindo a educação no título dos Direitos e Garantias Fundamentais (artigo 6º) ao lado de saúde, trabalho, moradia, segurança, entre outros direitos sociais. Em seu artigo 205, a Carta Magna estabelece que “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade…”, tendo como objetivo o pleno desenvolvimento da pessoa e o preparo para o exercício da cidadania. Ou seja, a educação é concebida não apenas como um serviço, mas como um pilar para o desenvolvimento humano e social.
Mais que isso, a Constituição cidadã cravou mecanismos para tornar esse direito efetivo: o artigo 208 define as garantias (ensino fundamental obrigatório e gratuito, atendimento em creche e pré-escola, acesso aos níveis mais elevados segundo a capacidade etc.), e no parágrafo 1º do mesmo artigo afirma que “o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo”. Direito público subjetivo significa que qualquer cidadão (no caso, criança ou adolescente, representado por seus responsáveis) pode exigir judicialmente do Estado a oferta da educação básica obrigatória. É um direito exigível, e o Estado não pode se escusar de provê-lo. Esse status jurídico reforça a ideia de indisponibilidade: a educação básica não pode ser negada nem suspensa, sob pena de violação direta da Constituição. Um estudante que ficar sem aulas regulares por desídia do poder público (seja por falta de vagas, seja por escola fechada em greve prolongada) teoricamente poderia acionar a Justiça para fazer valer esse direito.
Do ponto de vista dos princípios de Direito Administrativo, a continuidade do serviço público é regra basilar – serviços essenciais devem ser prestados de forma ininterrupta. Claro que podem ocorrer interrupções legítimas (recessos escolares planejados, por exemplo), mas a doutrina clássica ensina que a prestação do serviço público não pode ser arbitrariamente paralisada porque o interesse público é indisponível. Aplicado à educação, isso significa que o funcionamento regular das escolas e instituições de ensino deve ser garantido pelos governantes, mesmo diante de conflitos trabalhistas.
É esperado que se lancem mão de medidas como negociações, mediações, dissídios coletivos judiciais e planos de contingência para assegurar que os alunos não fiquem sem aula. Quando a paralisação ocorre, cabe ao Estado mitigar seus efeitos (repondo aulas, mobilizando profissionais substitutos, realocando orçamento para resolver impasses etc.), já que não se trata de um serviço qualquer, mas de um dever constitucional continuado.
A noção de que a educação integra o núcleo duro dos direitos fundamentais faz com que muitos juristas considerem esse direito uma cláusula pétrea – isto é, um elemento do texto constitucional que não pode ser abolido nem enfraquecido por emenda (conforme o artigo 60, §4º, IV, que protege os “direitos e garantias individuais”). Embora haja discussão se os direitos sociais estão todos cobertos por essa cláusula (que originalmente menciona direitos individuais), a tendência majoritária é entendê-los como parte do catálogo de direitos fundamentais, portanto intangíveis.
Em suma, não se admite retrocesso em relação ao direito à educação. Esse princípio da vedação ao retrocesso social implica que políticas públicas não podem regredir na garantia desse direito – e, por analogia, períodos de suspensão prolongada das atividades educacionais seriam uma forma de retrocesso temporário que precisa ser compensado ao máximo.
Historicamente, a sociedade brasileira lutou para consolidar a educação pública gratuita e de qualidade como um patrimônio nacional. Movimentos pedagógicos, campanhas de alfabetização e a pressão por planos nacionais de educação refletem a compreensão de que somente com continuidade e universalização do ensino o país pode aspirar a desenvolvimento e justiça social.
As greves frequentes, nesse contexto, aparecem quase como uma contradição dolorosa: são realizadas em nome de melhorias na educação, mas no curto prazo prejudicam o próprio ato de educar. Por isso, mesmo setores sindicais mais combativos têm buscado equilibrar suas pautas com a manutenção do ano letivo. Muitas vezes, acordos de fim de greve incluem cláusulas de reposições das aulas perdidas e compromisso de não punir alunos pelas faltas em dias de paralisação. Tais acordos, validados pela Justiça, procuram reparar o dano ao direito dos estudantes, embora não apaguem totalmente os transtornos sofridos.
Por fim, lembrar a centralidade da educação como direito fundamental nos remete ao propósito original do serviço público educacional: servir ao interesse da nação e da população. Professores, diretores, gestores e governos são, em última instância, guardiãs de um direito que pertence às crianças e jovens. Este caráter indisponível impõe a todos os agentes – incluindo os próprios servidores da educação – um dever de zelo.
A estabilidade do calendário escolar e a qualidade do ensino não beneficiam apenas os alunos individualmente, mas a sociedade como um todo, que ganha cidadãos mais preparados, mão de obra qualificada e redução de problemas sociais associados à falta de educação. Assim, a preservação desse direito deve ser vista como uma missão coletiva, acima de interesses corporativos ou conjunturais.
Projeto de futuro adiado
A recorrência de greves e paralisações no setor educacional brasileiro acendeu um alerta: a educação, proclamada como direito fundamental e prioridade nacional, não pode ficar refém de embates salariais e administrativos. Cada vez que uma escola fecha suas portas por greve, abre-se uma ferida no tecido social – um direito constitucional é tolhido, ainda que temporariamente, e os custos recaem sobre os ombros de quem menos pode suportá-los. Por isso, a sociedade e as instituições têm reagido, cobrando soluções equilibradas.
Os tribunais afirmam, em termos contundentes, que o direito de aprender das crianças e jovens deve prevalecer. Pais e alunos clamam por responsabilidade e compromisso dos gestores e educadores para que o ano letivo transcorra sem sobressaltos. E os próprios educadores, cientes desse dilema, buscam novas formas de reivindicar melhorias sem sacrificar os estudantes no processo.
A educação é, em essência, um projeto de futuro – futuro das crianças, do país, do desenvolvimento humano. Interrompê-la reiteradamente é comprometer esse futuro. Ao reconhecer a educação como direito indisponível, a Constituição e a sociedade brasileira deixaram claro que não há tempo a perder: cada aula conta, cada dia de escola importa. Neste sentido, assegurar a continuidade do ensino público não é somente uma questão legal ou trabalhista, mas um imperativo moral e civilizatório.
Cabe a todos, enquanto coletividade, zelar para que as salas de aula permaneçam cheias e ativas, pois é ali que se constrói a cidadania e se honra, de fato, o compromisso constitucional de fazer da educação um direito de todos – um direito fundamental que não pode ser suspenso, negociado ou negado.
*Carlos Augusto, jornalista e cientista social.
*Entenda o conceito
Educação como Direito Indisponível
Direitos indisponíveis são aqueles direitos fundamentais que não podem ser renunciados, transferidos ou negociados, nem mesmo com o consentimento da parte titular. São considerados essenciais à dignidade da pessoa humana ou ao interesse público, de modo que o ordenamento jurídico impede sua alienação, extinção voluntária ou flexibilização.
Exemplos de direitos indisponíveis:
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Direito à vida
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Direito à liberdade
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Direito à integridade física e moral
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Direitos da personalidade (nome, imagem, honra, privacidade)
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Direitos da criança e do adolescente
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Direitos fundamentais trabalhistas mínimos (como salário mínimo e descanso semanal)
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Direitos ligados ao estado de família, como guarda de filhos, alimentos e poder familiar
Diferença entre direito disponível e indisponível:
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Disponíveis: podem ser renunciados ou negociados (como um crédito em dinheiro, a venda de um bem, ou uma dívida particular).
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Indisponíveis: não podem ser objeto de renúncia ou disposição pelas partes (como o direito à vida ou ao devido processo legal).
No processo judicial:
Direitos indisponíveis não podem ser transigidos (isto é, não se admite acordo ou desistência simples). Por isso, o Ministério Público muitas vezes atua como fiscal da ordem jurídica nos processos que envolvem tais direitos.
Fontes e Referências:
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Constituição Federal de 1988, arts. 6º, 205, 208 e 227.
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Lei 9.394/1996 (LDB), art. 24, I – fixação de no mínimo 200 dias letivos anuais.
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DIEESE – Balanço das Greves do primeiro semestre de 2023: dados sobre greves no funcionalismo).
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O Tempo – “Greve de professores prejudica aprendizado e rotina de famílias” (06/04/2022).
Agência Brasil – cobertura sobre greves na educação: Rio de Janeiro (2024); Federais (2024)..
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UOL Educação – “Professores e funcionários de 132 Etecs e Fatecs estão em greve em SP” (08/08/2023).
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STF – Reclamação 16502/MA, decisão da Min. Cármen Lúcia (2014)..
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STF – RE 693456, julgamento em 27/10/2016: corte de ponto de servidores em greve.
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TJDFT – Acórdão 0716922-06.2023.8.07.0000 (1ª Câmara Cível, maio/2024)
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TJ-RJ – decisão liminar na greve dos professores do Rio (nov/2024).
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TST – SDC, dissídio coletivo da PUC-SP (2014).
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Instituto Alfa e Beto – “O desempenho das escolas particulares” (artigo, 2020).
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Undime/Folha Dirigida – Entrevista Marco Aurélio Santana sobre greves na educação.
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Pesquisa acadêmica: Annegues et al. “O impacto das greves dos professores universitários sobre o desempenho dos alunos da UFPB”.
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Uma resposta
Desumano o que a prefeitura de Feira fez com os professores aumentando a carga horária. Depois querem que os professores se mantenham no cargo. Muitos estão assumindo e SAINDO porque não aguentam as condições de trabalho. Dessa forma sempre vai faltar professor na rede municipal de Feira de Santana. É um tiro no pé.