Reportagem assinada por Luany Galdeano, publicada em 4 de maio de 2025 (domingo) no jornal Folha de S.Paulo, revelou que, em 2024, ao menos 11 magistrados lotados em comarcas situadas nos 50 municípios com menor Produto Interno Bruto (PIB) per capita do país receberam remunerações mensais superiores ao teto constitucional do funcionalismo público, fixado em R$ 44.008,52 até janeiro de 2025. Em casos extremos, os vencimentos chegaram a ultrapassar R$ 111 mil por mês, superando, individualmente, o orçamento anual destinado à execução de políticas públicas essenciais, como saneamento básico, habitação popular e agricultura familiar nessas localidades.
A distorção remuneratória não se limita ao Poder Judiciário. O Ministério Público também figura entre os órgãos que vêm efetuando pagamentos acima do teto constitucional a seus membros, configurando o que especialistas e órgãos de controle classificam como prática de ‘supersalários‘.
Casos emblemáticos no Maranhão e Amazonas
Na comarca de Icatu (MA), a juíza Nivana Pereira Guimarães ultrapassou o teto remuneratório em oito ocasiões durante o ano, recebendo em dezembro R$ 107 mil. A soma anual de sua remuneração foi de R$ 634 mil, montante superior ao orçamento total previsto para a Secretaria de Meio Ambiente (R$ 424 mil) e saneamento (R$ 332 mil) do município.
Em Alcântara (MA), o juiz Rodrigo Otávio Terças Santos recebeu R$ 585 mil ao longo do ano, sendo cinco vezes acima do teto. O valor excede o orçamento anual destinado à agricultura (R$ 519 mil) e à habitação (R$ 151 mil). Em nota, o magistrado declarou que os valores pagos referem-se a férias indenizadas e funções extras, como a coordenação do sistema processual eletrônico do Tribunal de Justiça do Maranhão.
Ainda no Maranhão, nove juízes receberam acima do teto constitucional atuando em cidades de baixo IDH. O estado concentra 34 dos 50 municípios com menor PIB per capita, segundo o IBGE.
No Amazonas, os juízes Manoel Átila Araripe Autran Nunes, de Santa Isabel do Rio Negro, e outro não identificado também ultrapassaram o teto. Nunes recebeu R$ 512 mil em 2024, valor quatro vezes superior ao teto em determinados meses, enquanto o orçamento municipal para políticas de proteção à mulher foi de apenas R$ 112 mil.
Natureza dos pagamentos e legalidade questionada
Segundo o levantamento, um terço dos supersalários é composto por penduricalhos, como verbas indenizatórias e adicionais temporários. A soma desses acréscimos atingiu R$ 637 mil em pagamentos acima do teto, com base nos dados oficiais do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
O CNJ autoriza, sob determinadas condições, o pagamento de verbas indenizatórias fora do teto, o que é sustentado por associações de magistrados, como a Associação dos Magistrados do Maranhão (Amma). No entanto, tribunais e associações estaduais dos magistrados do Amazonas e Maranhão não se manifestaram oficialmente até o fechamento desta reportagem.
Impactos fiscais e sociais
Especialistas apontam que os supersalários comprometem o equilíbrio fiscal dos estados e prejudicam o financiamento de políticas públicas. A economista Renata Vilhena, presidente do Instituto República.org, afirma que os recursos utilizados nesses pagamentos poderiam ser alocados para suprir deficiências em saúde, educação e assistência social nos municípios carentes.
Dados do movimento Pessoas à Frente indicam que os R$ 11,1 bilhões pagos em supersalários em 2023 seriam suficientes para:
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Sustentar o Bolsa Família para 1,36 milhão de lares por um ano;
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Construir 4.582 unidades básicas de saúde;
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Conceder bolsas do programa Pé-de-Meia a 3,9 milhões de estudantes.
Críticas à distorção remuneratória
O economista Nelson Marconi, da FGV, reconhece a necessidade de remuneração atrativa para magistrados que atuam em regiões remotas, mas critica a lógica que permite valores acima do teto sob o pretexto de indenizações. Segundo ele, auxílios como ressarcimento de plano de saúde e auxílio-creche não deveriam ser classificados como indenizatórios permanentes.
Tadeu Barros, diretor-presidente do Centro de Liderança Pública (CLP), defende a vinculação da remuneração dos juízes à responsabilidade fiscal e à média nacional de vencimentos, especialmente em comarcas de cidades pobres como Bequimão (MA), onde o PIB per capita é de apenas R$ 6.480,26. Nesse município, a juíza Flor de Lys Ferreira Amaral teve remuneração média de R$ 42,5 mil, com três meses acima do teto, chegando a R$ 84 mil.
Caso Sergipe: ‘teto duplex’ e pagamentos retroativos
O Tribunal de Justiça de Sergipe (TJSE) pagou, em abril de 2025, mais de R$ 100 mil a 151 magistrados, conforme dados de contracheques divulgados pelo próprio portal da transparência do órgão. A medida foi viabilizada por decisão do corregedor nacional de Justiça, ministro Mauro Campbell, que autorizou o pagamento retroativo de benefícios, permitindo um teto prático de R$ 92,6 mil mensais.
Três magistrados receberam mais de R$ 150 mil no período. Em quatro casos, indenizações ultrapassaram os R$ 80 mil.
Profunda desigualdade social
A manutenção de supersalários no Judiciário e no Ministério Público, especialmente em contextos de profunda desigualdade social e orçamentos públicos restritos, evidencia uma distorção sistêmica na distribuição de recursos públicos. Embora respaldadas por interpretações legais, tais práticas desafiam o princípio republicano da isonomia e da eficiência na gestão pública, comprometendo a legitimidade institucional e a confiança da população no sistema de Justiça.
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