A canção “Gîtâ”, composta por Raul Seixas e Paulo Coelho em 1974, volta a ocupar posição central nos debates culturais contemporâneos, tanto por sua complexidade lírica e filosófica quanto por sua ressonância com as inquietações existenciais provocadas pela Quarta Revolução Tecnológica e seus efeitos sobre o sujeito moderno. Inspirada no Bhagavad Gītā, clássico da tradição filosófica hindu, a obra estrutura-se por meio de afirmações identitárias sucessivas na forma “Eu sou”, articulando uma cosmovisão que transcende a dimensão estética do rock para adentrar os domínios simbólicos, teológicos e ontológicos. Nesse contexto, “Gîtâ” não apenas reafirma o sincretismo místico que marca parte da produção artística de Raul Seixas, mas se consolida como um manifesto metafísico sobre a unidade entre o ser e o todo, em diálogo com a crise de sentido que caracteriza a civilização tecnificada do século XXI.
Letra e estrutura narrativa
Inspiração na tradição védica e no sincretismo moderno
“Gîtâ” foi lançada no álbum homônimo de Raul Seixas em 1974, no auge de sua parceria com o escritor Paulo Coelho. O título remete diretamente ao Bhagavad Gītā, que significa “Canção do Senhor” em sânscrito, texto que integra o épico indiano Mahabharata, no qual o deus Krishna transmite ensinamentos espirituais ao guerreiro Arjuna antes de uma batalha decisiva.
A obra foi concebida sob forte influência esotérica, resultado do envolvimento dos autores com o ocultismo, a filosofia oriental e movimentos alternativos de contracultura.
A letra da canção foi inspirada diretamente no texto sagrado Bhagavad Gītā, parte do épico indiano Mahabharata. Nessa escritura, o deus Krishna revela sua forma cósmica ao guerreiro Arjuna e afirma:
“De todos os seres, eu sou o princípio, o meio e o fim” (Bhagavad Gītā, capítulo 10, verso 20).
É essa concepção de totalidade e simultaneidade que Raul sintetiza em:
“Eu sou o início, o fim e o meio”.
Segundo o pesquisador Maurício de Carvalho, no artigo Raul Seixas e o Sagrado: leituras esotéricas da canção popular brasileira (2009), “Gîtâ é a mais explícita tentativa de fundir o rock com a tradição iniciática, apresentando Raul como porta-voz de uma verdade mística que transcende o tempo histórico”. Para Carvalho, a música é “uma invocação metafísica com vocabulário profano”.
A construção do “eu sou” e a ontologia do ser múltiplo
A repetição da expressão “eu sou” é central na construção da canção. Essa fórmula remete tanto à tradição bíblica — “Eu sou o que sou” (Êxodo 3:14) — quanto à noção de atman-brahman no hinduísmo, em que o ser individual é idêntico ao absoluto.
O filósofo Luiz Tatit, no livro O Cancionista: composição popular no Brasil (Edusp, 2002), observa que Raul Seixas foi um dos raros artistas que “soube dramatizar o discurso filosófico com naturalidade dentro da canção popular”. Tatit destaca que o uso da enumeração em “Gîtâ” “cria uma tensão entre identidade e diferença”, fazendo com que o sujeito da canção transite entre categorias fixas e fluidas — um eu que é múltiplo, contraditório e arquetípico.
A estrutura enumerativa como afirmação totalizante
A canção se organiza em uma sequência de autoafirmações em primeira pessoa, como em:
“Eu sou a luz das estrelas / Eu sou a cor do luar / Eu sou as coisas da vida / Eu sou o medo de amar”
A estrutura sugere um ser que se apresenta como tudo e todos, assumindo a forma de uma entidade cósmica, reminiscente da voz de Krishna no Bhagavad Gītā, que afirma:
“De todos os seres, eu sou o princípio, o meio e o fim.”
Raul repete esse núcleo em:
“Eu sou o início, o fim e o meio”
Essa repetição configura o clímax da música, reafirmando a atemporalidade e onipresença do ser.
Paradoxos e ambivalência como essência do sujeito
A letra incorpora elementos antagônicos:
“Eu sou o medo do fraco / A força da imaginação / O blefe do jogador / Eu sou, eu fui, eu vou”
A justaposição de paradoxos não indica incoerência, mas sim uma tentativa de abarcar a totalidade da experiência humana, em consonância com doutrinas metafísicas que descrevem o Todo como contraditório e indizível, conceito presente tanto na filosofia oriental quanto em correntes como o gnosticismo.
Crítica à superficialidade das relações humanas, ignorância espiritual e recusa ao reducionismo racional
Nos versos iniciais:
“Às vezes você me pergunta / Por que é que eu sou tão calado”
Raul critica as expectativas sociais por demonstrações superficiais de afeto e denuncia o vazio das relações que não compreendem o silêncio, o recolhimento ou a busca interior. É uma oposição ao mundo exterior e sua lógica imediatista.
O ensaísta Carlos Rennó, em Letra e Música: ensaios sobre canção brasileira (Publifolha, 2011), analisa esse trecho como “manifesto contra a hiper-racionalidade que exige explicações racionais e desconsidera a vivência interior do sagrado”. Para Rennó, “Gîtâ representa a recusa do mundo moderno em reconhecer o silêncio como sabedoria”.
Entre o místico e o cotidiano: a teopoética do sincretismo
Raul entrelaça elementos simbólicos profundos com imagens triviais do cotidiano:
“Eu sou a dona de casa / Nos pegue-pagues do mundo”
“Eu sou a mosca na sopa / E o dente do tubarão”
Esse entrelaçamento configura o que o crítico André Martins, em Música Popular e Mística: Raul Seixas e os símbolos do eterno retorno (Revista Ritmos, 2013), define como “teopoética do sincretismo”. Para Martins, Raul “não apenas canta sobre o sagrado — ele encarna a forma como o sagrado se mistura com o profano numa cultura como a brasileira, de matriz plural e mestiça”.
A presença da letra “A”, citada como:
“A letra A tem meu nome”
é interpretada por Paulo Coelho como referência ao próprio nome de Deus, o alfa, segundo a tradição hermética. Isso está registrado no livro O Mago (2008), biografia autorizada de Coelho, onde o autor afirma: “Com Raul, a gente queria criar uma ponte entre o esoterismo e o povão. Gîtâ era isso: uma revelação acessível.”
Esses trechos revelam o desejo de universalizar o sagrado, misturando símbolos triviais com alegorias da condição humana. O resultado é uma composição que rompe com os limites da religião institucionalizada e propõe uma espiritualidade autônoma, acessível e sincrética.
“Gîtâ” como alegoria espiritual do Brasil moderno
A canção “Gîtâ”, composta por Raul Seixas e Paulo Coelho em 1974, constitui uma obra multifacetada que entrelaça referências do hinduísmo, elementos da tradição esotérica ocidental, crítica social e expressões da cultura brasileira em uma estrutura poética singular. Sua permanência no imaginário cultural nacional decorre da habilidade de articular conteúdos filosóficos e espirituais profundos por meio de uma linguagem acessível, sem renunciar à densidade conceitual.
Reconhecida como uma das peças mais complexas da música popular brasileira, “Gîtâ” representa uma fusão entre a mística oriental, a teologia bíblica e a poesia popular, ao lado de uma crítica sutil à realidade social. A composição ultrapassa dicotomias como erudito e popular, sagrado e profano, metafísico e cotidiano, propondo uma reconciliação simbólica entre o ser e o mundo.
Para estudiosos e intérpretes, Raul Seixas não apenas transmite uma mensagem espiritual, mas encena uma cosmovisão monista, na qual o ser se identifica com todas as coisas — luz e trevas, bem e mal, início e fim. A estrutura reiterativa do “Eu sou” exprime essa totalidade ontológica, fazendo eco ao conceito de unidade presente no Bhagavad Gītā e em diversas tradições místicas.
Essa visão permanece atual, especialmente em um contexto global marcado pela fragmentação identitária e pelo vazio de sentido espiritual. “Gîtâ” ressurge, assim, como uma resposta artística à crise existencial contemporânea, convidando à reflexão sobre o lugar do indivíduo no cosmos e na história.
Crítica e legado cultural
A obra de Raul Seixas sempre esteve situada na fronteira entre o transcendente e o popular, e “Gîtâ” é seu exemplo mais bem-acabado dessa convergência. A letra não apenas ecoa a tradição hindu, mas também reflete uma crítica ao reducionismo materialista e à ausência de sentido existencial na modernidade.
O caráter místico da canção, entretanto, não prescinde de um viés crítico: a constatação de que a verdade essencial do ser é ignorada pelas convenções sociais, e que a presença do divino no cotidiano passa despercebida — como sugere o verso:
“Você me tem todo dia / Mas não sabe se é bom ou ruim”
*Conceito de Teopoética
A teopoética, em seu sentido mais amplo, designa um campo interdisciplinar que investiga as interações entre literatura e teologia, ou, de modo mais abrangente, entre a literatura e o sagrado. Trata-se de uma abordagem que examina como a linguagem literária pode expressar, problematizar ou transcender concepções teológicas, ao mesmo tempo em que considera de que maneira os discursos religiosos podem iluminar, ampliar ou reinterpretar os sentidos da produção literária.
*Carlos Augusto, jornalista e cientista social, editor do Jornal Grande Bahia.
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