Não Vai Dar Certo: Música de Celso Viáfora ecoa o desencanto coletivo do Brasil entre crises políticas, desigualdade social e retrocessos democráticos | Por Carlos Augusto

Celso Viáfora, em parceria com Pedro Viáfora, lançou a canção “Não Vai Dar Certo” como manifesto crítico da realidade brasileira, unindo ironia, linguagem popular e denúncia social.

A música “Não Vai Dar Certo”, de Celso Viáfora em parceria com Pedro Viáfora, apresenta-se como um manifesto incisivo sobre o Brasil contemporâneo, em um contexto de crises políticas sucessivas, instabilidade econômica, desigualdades estruturais e crescente descrença nas instituições democráticas.

A obra, permeada por ironia e linguagem popular, desnuda os mecanismos que condicionam a vida nacional: a financeirização das relações sociais, a precariedade dos serviços públicos, a alienação cultural e a manipulação política. Nesse sentido, dialoga não apenas com o desencanto coletivo interno, mas também com os retrocessos democráticos no cenário internacional, evocando inclusive líderes como Donald Trump.

Mais do que uma simples composição, a canção se inscreve na tradição da música de protesto brasileira, herdeira de uma linhagem que vai de Geraldo Vandré a Chico Buarque, tensionando permanentemente os limites entre denúncia social e assimilação pela indústria cultural. Ao fazê-lo, evidencia os dilemas estruturais que bloqueiam o avanço do país, ao mesmo tempo em que transforma indignação em expressão estética e resistência simbólica.

O contexto histórico da canção

A obra emerge em um período turbulento da última década, marcado por instabilidade política, econômica e institucional, no qual a confiança no sistema democrático foi corroída pela sucessão de escândalos, promessas não cumpridas e desigualdades persistentes. A canção torna-se, assim, uma espécie de crônica sonora do mal-estar coletivo, condensando em versos o sentimento de frustração nacional.

Ao mencionar diretamente Donald Trump, Viáfora expande a crítica para além das fronteiras brasileiras, inserindo-a em um quadro global de erosão institucional e ascensão de lideranças populistas e autoritárias. Essa conexão reforça a ideia de que a crise democrática não é um fenômeno isolado, mas parte de um processo mais amplo que atinge diversas sociedades contemporâneas.

Estrutura e linguagem

A composição é marcada pela repetição incisiva da pergunta retórica — “sabe a sensação de que nunca essa porra vai dar certo?” —, que funciona como um refrão de indignação coletiva. Esse recurso aproxima imediatamente o ouvinte, transformando a canção em catarse popular. O uso de gírias, expressões coloquiais e um tom de desabafo rompe barreiras formais e legitima a experiência cotidiana como matéria de arte e crítica social.

Nos versos, a canção utiliza metáforas e imagens que traduzem de forma acessível a frustração nacional:

  • “Sai na cara do gol / A gente mata no peito / A gente dá nosso show / E chuta a bola no teto” — metáfora futebolística que evidencia oportunidades desperdiçadas e o contraste entre potencial e fracasso.

  • “Pra pagar a SELIC / Mais o juro do cheque” — crítica à financeirização da vida, mostrando como o cidadão é aprisionado em dívidas e mecanismos de exploração econômica.

  • “Vai ter sempre um achaque / Vai ter sempre um aplique” — referência à sabotagem institucional, às manobras e práticas corruptas que impedem o avanço coletivo.

A canção combina ironia e amargura, denunciando um cotidiano em que o esforço individual se mostra insuficiente diante de estruturas de poder que perpetuam o bloqueio histórico ao desenvolvimento nacional.

O vídeo e a performance

A obra circula sobretudo em apresentações ao vivo. O vídeo de “Não Vai Dar Certo” é direto, quase sem recursos técnicos, reforçando a potência da palavra. A interpretação de Viáfora, declamatória e incisiva, transforma a canção em manifesto musical. O foco não está na estética audiovisual, mas na denúncia social que a letra carrega.

Significado e crítica social

Mais que uma canção, “Não Vai Dar Certo” é um hino da desesperança coletiva. O título sintetiza a percepção de que as tentativas de avanço são sistematicamente frustradas.

A obra denuncia:

  • a precariedade social (“falta vaga na creche / a gente paga no cash”);
  • a exploração financeira (“pra pagar a SELIC / mais o juro do cheque”);
  • o aparelhamento político (“eleger outra gangue / pra fazer uma PEC / pra sugar nosso sangue”).

O refrão repetitivo funciona como mantra do descontentamento, não para aceitar o fracasso, mas para expor sua permanência como escândalo público.

Os desafios do Brasil contemporâneo

A pertinência da canção se reforça diante de problemas crônicos:

  • Desigualdade social extrema — o Brasil continua entre os países mais desiguais do mundo.
  • Financeirização da vida cotidiana — juros altos, endividamento das famílias e dependência da política monetária.
  • Crise de serviços públicos — falta de infraestrutura básica, como escolas e hospitais, refletida em versos como “falta vaga na creche”.
  • Polarização política — que gera descrença nas instituições e reforça o sentimento de que o futuro está bloqueado.

A canção, nesse contexto, não apenas retrata a realidade, mas expõe a ausência de horizonte emancipatório, conforme diagnosticado pela teoria crítica.

A crítica à luz da Teoria Crítica de Frankfurt

Sob a ótica da Escola de Frankfurt, a canção expressa o que Adorno e Horkheimer chamaram de alienação produzida pela indústria cultural. O refrão constante, “nunca essa porra vai dar certo”, traduz a lógica de resignação típica da cultura de massas.

Para Adorno, “divertir-se significa estar de acordo”. A música de Viáfora rompe esse ciclo: em vez de entreter, incomoda e denuncia. Contudo, há uma contradição: ao repetir a inevitabilidade do fracasso, o risco é reforçar a resignação que critica.

Herbert Marcuse, em O Homem Unidimensional, descreveu como o sistema integra até a contestação, neutralizando-a. A obra de Viáfora tensiona esse limite: é denúncia que revela contradições, mas pode ser absorvida pelo próprio mercado cultural que critica.

Desafios do Brasil contemporâneo

A análise da canção sob a ótica marxista se conecta diretamente aos desafios estruturais do Brasil. O país convive com uma das maiores concentrações de renda do mundo, onde 1% mais rico detém mais de 30% da riqueza nacional. A precarização do trabalho, a informalidade e a reforma trabalhista agravaram a fragilidade do trabalhador, que, como na letra, “caiu no conto” de promessas não cumpridas.

Além disso, o endividamento público e a dependência da política monetária — simbolizada pela taxa SELIC — funcionam como mecanismos de transferência de recursos da maioria para uma elite rentista. A canção denuncia essa engrenagem, que garante lucros financeiros enquanto o cidadão enfrenta falta de serviços básicos, como creches e saúde de qualidade.

A alienação cultural, retratada em referências como “um acrobata do Cirque / Um ogro feito o Shrek”, reforça a dimensão marxista da crítica: o trabalhador é transformado em espetáculo, em caricatura, em mercadoria, enquanto seu sofrimento é invisibilizado.

Tradição da música de protesto brasileira

Do ponto de vista cultural, “Não Vai Dar Certo” se inscreve na tradição da música de protesto brasileira, mas com linguagem coloquial e irônica, mais próxima do rap e do slam. A força da obra está em dar voz ao desencanto coletivo, transformando frustração em denúncia.

Contudo, sob a ótica da Escola de Frankfurt, o dilema persiste: a arte que denuncia pode ser absorvida pela mesma engrenagem cultural que reproduz a alienação. O desafio é manter o choque vivo, como propôs Adorno, impedindo que a indignação se transforme apenas em produto de consumo.

Perfil de Celso Viáfora e Pedro Viáfora

Celso Viáfora

Celso Viáfora nasceu em São Paulo e construiu uma trajetória sólida como cantor, compositor e letrista da música popular brasileira, destacando-se pela criação de canções de forte teor social e político. Sua obra combina lirismo, crítica e engajamento, consolidando-o como herdeiro da tradição da MPB comprometida com as transformações sociais. Reconhecido como compositor premiado, mantém parcerias relevantes com nomes como Ivan Lins, José Miguel Wisnik e Vicente Barreto, reafirmando sua inserção no núcleo criativo de grandes expoentes da canção brasileira.

Compositor, intérprete, violonista e arranjador, Viáfora iniciou seus estudos musicais na Fundação das Artes de São Caetano do Sul e, posteriormente, cursou arranjo com o maestro Nélson Ayres no Conservatório do Brooklin. Essa formação lhe deu uma sólida base técnica, aliada à sensibilidade poética que caracteriza sua produção artística.

Nos primeiros anos de carreira, venceu festivais de música, compôs trilhas sonoras para o teatro e percorreu o Brasil. Foi nesse período que emplacou o curioso fenômeno de “NÃO VOU SAIR”, música inicialmente gravada por Nílson Chaves. Embora nunca executada pelas rádios e TVs dos grandes centros, a canção ganhou popularidade espontânea nas regiões Norte e Nordeste, tornando-se um sucesso nas vozes de artistas independentes e cantores da noite. Esse percurso lembrou a trajetória dos grandes sucessos da era do rádio, quando era a aceitação natural do público, e não a força do marketing, que definia o êxito de uma obra.

Fruto desse reconhecimento, Viáfora pôde lançar em 1992, pela gravadora Outros Brasis, de Belém do Pará, seu primeiro disco solo, Celso Viáfora. Antes disso, já havia participado do álbum coletivo Trocando Figura (1986), pela Copacabana, ao lado de César Brunetti, Jean e Paulo Garfunkel.

Parceiro de Vicente Barreto, Guinga, Eduardo Gudin, Elton Medeiros, Hermínio Bello de Carvalho, Jean e Paulo Garfunkel, Ivan Lins, entre tantos outros, Viáfora soma sete discos lançados no Brasil e alcançou reconhecimento internacional em 2005, quando parte de sua obra foi lançada no Japão pela gravadora Ward, sob o título A Carreira de Celso Viáfora.

Respeitado pelos maiores músicos brasileiros e admirado por artistas consagrados, consolidou-se como referência na Música Popular Brasileira contemporânea, graças à qualidade, peculiaridade e força de sua obra. No projeto Talentos, apresenta-se ao lado do filho Pedro Viáfora, com quem compartilha o palco e a autoria de canções, reforçando a continuidade da tradição da canção crítica e engajada entre gerações.

Pedro Viáfora

Pedro Viáfora nasceu em São Paulo, em agosto de 1989. Jornalista por formação e músico por vocação, cresceu cercado pela atmosfera da música graças à forte influência de seu pai, o cantor e compositor Celso Viáfora, referência da canção crítica brasileira. Desde cedo, Pedro assimilou não apenas os acordes e melodias, mas também a dimensão social e poética que a música podia carregar.

Aos 15 anos, estreou como letrista ao assinar sua primeira canção, marcando o início de uma trajetória em que a palavra e a música se entrelaçam como instrumentos de reflexão. O caminho escolhido não foi o da mera repetição do modelo paterno, mas o de uma atualização criativa: Pedro Viáfora segue os passos do pai como compositor, porém imprime sua própria identidade, dialogando com influências urbanas, contemporâneas e da cultura periférica.

Sua produção expande as fronteiras da música engajada, preservando a essência crítica que caracteriza a tradição da canção brasileira, mas incorporando elementos de linguagem poética, referências literárias e sonoridades que dialogam com novas gerações. Nesse sentido, seu trabalho reforça a vitalidade da música de protesto ao mesmo tempo em que a renova, inserindo-a no universo das grandes cidades e dos dilemas sociais atuais.

A parceria entre pai e filho, construída ao longo dos anos, fortalece não apenas os laços familiares, mas também a continuidade de uma linhagem artística que entende a música como espaço de resistência e questionamento. Se Celso Viáfora consolidou uma voz crítica nas décadas anteriores, Pedro projeta essa tradição no presente, tornando-a relevante para públicos mais jovens e mantendo vivo o espírito da canção crítica em tempos de transformações culturais e políticas.

Linha do tempo no contexto político-social da obra

1985 — Redemocratização e abertura cultural
Com o fim da ditadura militar e a volta da democracia, o Brasil vive um momento de efervescência cultural. É nesse contexto que Celso Viáfora inicia sua trajetória como compositor, destacando-se por músicas de cunho social e político, conectadas à tradição da canção de protesto.

1994 — Plano Real e estabilização econômica
A estabilização da moeda traz novos desafios: o aumento da desigualdade social e a exclusão de amplas camadas da população. Viáfora incorpora em sua obra críticas às contradições do desenvolvimento brasileiro, compondo letras que abordam a injustiça estrutural e a luta popular.

2003 — Governo Lula e crescimento econômico
Com a ascensão de Lula e o ciclo de crescimento econômico, surgem expectativas de transformação social. Viáfora, em diálogo com a MPB engajada, cria canções que reforçam o compromisso com a justiça social, mantendo vivo o espírito crítico em tempos de otimismo.

2013 — Manifestações de Junho
As jornadas de protesto revelam uma crise de representação política. Nesse período, a canção de protesto é retomada com mais força, e Viáfora reforça sua presença como cronista crítico do desencanto coletivo, retratando o mal-estar diante da corrupção e da precariedade dos serviços públicos.

2016 — Impeachment e polarização política
A queda de Dilma Rousseff e a ascensão de Michel Temer aprofundam a polarização. Viáfora produz obras que refletem a instabilidade, a crise das instituições e a crescente descrença da sociedade no sistema político.

2020 — Pandemia de Covid-19
A pandemia expõe de forma dramática a desigualdade estrutural do Brasil. Viáfora intensifica a crítica às falhas do Estado, à precariedade dos serviços de saúde e à vulnerabilidade da população diante de políticas insuficientes.

2025 — Tarifaço de Trump e crise democrática
Em meio às tensões entre Brasil e Estados Unidos, à crise do Judiciário e à insatisfação popular com a política, Celso e Pedro Viáfora lançam “Não Vai Dar Certo”. A música ganha dimensão de hino do desencanto nacional, sintetizando frustrações acumuladas e atualizando a tradição da canção de protesto para o presente.

*Carlos Augusto, jornalista, cientista social e editor do Jornal Grande Bahia.


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