Em 11 de janeiro de 1912, o Almirante Joaquim Marques Baptista de Leão apresentou sua renúncia ao cargo de Ministro da Marinha em protesto contra a ordem de bombardear Salvador para cumprir decisão judicial. O gesto resultou na histórica “Carta de Ouro”, reproduzida em folhas banhadas a ouro pela população baiana como símbolo de gratidão e reconhecimento. Mais do que um ato pessoal, a decisão transformou-se em marco de resistência republicana, denunciando a utilização da força militar como instrumento político e reafirmando a primazia da Constituição, da dignidade humana e da autonomia dos Estados. Mais de um século depois, a atitude do almirante ecoa no Brasil contemporâneo, em meio a crises institucionais e disputas entre os Poderes da República, como lição histórica de ética pública e compromisso com a democracia.
Um gesto de ruptura em defesa da dignidade
Em 1912, o Almirante Joaquim Marques Baptista de Leão entregou sua renúncia ao cargo de Ministro da Marinha, em um ato de protesto contra a ordem de bombardear Salvador para cumprir decisão judicial. O gesto ficou eternizado na história como a “Carta de Ouro”, documento reproduzido pela população baiana em folhas banhadas a ouro como símbolo de reconhecimento e gratidão.
O episódio ocorreu em um contexto de tensões federativas e disputas políticas no início da República, quando a intervenção militar era frequentemente utilizada como mecanismo de poder. Ao recusar-se a autorizar a partida de navios para o ataque, Marques de Leão afirmou que não poderia “ser conivente com uma iniquidade” que feria não apenas a Constituição, mas também “a Civilização e a dignidade humana”.
O conteúdo da Carta de Ouro
Na carta dirigida ao Presidente da República, o almirante registrou de forma clara e contundente sua discordância. Para ele, o bombardeio da capital baiana representava uma nódoa indelével na história do país e um opróbrio para os responsáveis pela ordem. Reforçou ainda que, embora reconhecesse a necessidade de respeito às decisões judiciais, jamais aceitaria que um “habeas corpus” fosse executado à custa da destruição de uma cidade livre e comercial.
O gesto, marcado por coragem e consciência institucional, projetou o nome do almirante como defensor da autonomia dos Estados e da preservação dos valores republicanos em um momento de instabilidade política.
Reflexos no Brasil contemporâneo
O episódio da “Carta de Ouro” ganha nova densidade quando confrontado com o cenário político brasileiro do século XXI, marcado por conflitos recorrentes entre os Poderes da República e pelo debate em torno dos limites de atuação do Judiciário, das Forças Armadas e do próprio Executivo. A decisão do almirante em 1912, ao colocar a consciência acima da obediência automática, revela um princípio que permanece atual: ordens que violam a dignidade humana e os fundamentos constitucionais não podem ser legitimadas sob o pretexto da legalidade formal.
Nos últimos anos, o país tem assistido a um processo de judicialização da política e a disputas institucionais que, em muitos casos, colocam em xeque o equilíbrio entre poderes. A lembrança da postura de Marques de Leão serve como alerta para o risco de transformar instrumentos legais em justificativa para atos que, embora revestidos de formalidade jurídica, podem fragilizar o pacto democrático e a confiança da sociedade nas instituições.
A “Carta de Ouro” também dialoga com o presente ao evidenciar a importância da autonomia federativa em um país de dimensões continentais. Assim como em 1912, quando a Bahia se viu ameaçada por um ato de força em nome da União, a atualidade demonstra que decisões centralizadas, quando descoladas da realidade local ou do interesse público, podem gerar crises profundas e enfraquecer a coesão nacional.
Mais de um século depois, o documento se mantém como referência moral e política. Em tempos de polarização, de ataques à democracia e de tentativas de instrumentalizar instituições militares para fins políticos, a atitude do almirante continua a ecoar como lição histórica: a lealdade à Constituição e ao interesse coletivo deve prevalecer sobre ordens arbitrárias, mesmo quando emanadas de autoridades superiores.
A trajetória do Almirante Marques de Leão
Nascido em 6 de janeiro de 1847, no Rio de Janeiro, Marques de Leão construiu uma carreira brilhante na Marinha. Ingressou na Escola Naval em 1863 e, dois anos depois, já atuava na Guerra do Paraguai, experiência que lhe conferiu condecorações como a Medalha da Passagem de Humaitá e a Medalha de Prata da Campanha do Paraguai.
Ao longo de sua trajetória, exerceu funções de comando em navios, escolas militares e divisões estratégicas da Marinha. Em 1910, assumiu o cargo de Ministro da Marinha, implementando a Reforma Marques de Leão, que descentralizou processos administrativos e criou novas estruturas, como o Comando da Defesa Móvel do Porto do Rio de Janeiro e a Imprensa Naval.
Legado e homenagens
A atitude do almirante repercutiu fortemente em Salvador e em todo o país. Em reconhecimento, a cidade eternizou sua memória ao renomear a antiga Rua dos Coqueiros do Farol como Avenida Marques de Leão, uma das principais vias da Barra. Além disso, a Marinha do Brasil homenageou sua postura ética ao batizar o Centro de Adestramento Almirante Marques de Leão, conhecido como “Camaleão”, em sua memória.
Essas homenagens revelam como sua decisão atravessou o tempo e consolidou-se como exemplo de dignidade e respeito aos princípios constitucionais.
Civilização, a humanidade e a ordem constitucional
A renúncia de Marques de Leão ultrapassa o episódio isolado e se insere na tradição de momentos em que a história nacional foi transformada por decisões individuais de grande impacto ético. Seu gesto demonstra que a obediência hierárquica, pilar das instituições militares, não pode se sobrepor ao dever de preservar a civilização, a humanidade e a ordem constitucional.
No contexto contemporâneo, em que a democracia brasileira enfrenta ameaças recorrentes de ruptura institucional, a “Carta de Ouro” reafirma a necessidade de delimitar claramente os papéis entre política e poder militar. A lição do almirante evidencia que a força das armas ou o peso das decisões judiciais não podem ser utilizados contra a própria sociedade que juram proteger. Ao recusar-se a legitimar um ato injusto, Marques de Leão mostrou que a verdadeira lealdade ao Estado é aquela que se ancora em princípios, e não na obediência cega.
Assim, o documento permanece como marco de resistência e recordatório de que a ética pública e o respeito à soberania nacional não se submetem a conjunturas passageiras. Seu exemplo ilumina as contradições atuais e reforça a urgência de preservar a democracia como valor permanente, acima das disputas políticas e dos interesses circunstanciais.
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