Em entrevista exclusiva ao jornal O Estado de S. Paulo, concedida aos jornalistas Fausto Macedo e Rayssa Motta em 29 de setembro de 2025 (segunda-feira), o ministro Mauro Luiz Campbell Marques, corregedor nacional de Justiça e integrante do Superior Tribunal de Justiça (STJ), defendeu o fim da aposentadoria compulsória com vencimentos integrais aplicada a magistrados punidos por infrações disciplinares ou crimes. Campbell classificou o benefício como um “prêmio travestido de punição”, ao argumentar que o atual modelo estimula a impunidade e desmoraliza o sistema judicial.
Durante a entrevista, o ministro também criticou o comportamento dos chamados “juízes TQQ” — expressão usada para designar magistrados que comparecem ao trabalho apenas às terças, quartas e quintas-feiras — e denunciou a existência de supersalários e privilégios estruturais que, segundo ele, corroem a credibilidade do Poder Judiciário e distanciam a magistratura da realidade da sociedade brasileira.
Ao propor uma reforma estrutural na cultura disciplinar do Judiciário, Campbell afirmou que a aposentadoria remunerada como pena máxima “transforma sanções em recompensas”, perpetuando um sistema de impunidade institucionalizada. O ministro lembrou que o mecanismo é previsto na Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman), de 1979, editada durante o regime militar, e ressaltou que a norma permanece praticamente inalterada há mais de quatro décadas, servindo de escudo corporativo para condutas incompatíveis com a ética e o interesse público.
“O que seria punição virou prêmio”
Campbell, que há décadas atua na magistratura e no Ministério Público, classificou a aposentadoria compulsória como “um privilégio moralmente indefensável”. Ele apontou que juízes punidos por corrupção, venda de sentenças e outros crimes graves deixam o cargo recebendo vencimentos proporcionais ao tempo de serviço, muitas vezes por décadas.
“O cidadão comum trabalha a vida inteira para se aposentar. Um juiz, com dez anos de carreira, pode ser pego em crime e ainda sair com remuneração garantida. Isso não é punição, é prêmio”, declarou.
Segundo o ministro, o dispositivo legal que permite a medida foi originalmente concebido como uma proteção política a magistrados perseguidos durante o regime de exceção. “Nos anos de chumbo, havia juízes cassados por razões ideológicas. A lei tinha uma função humanitária naquele contexto. Hoje, porém, ela serve para blindar quem comete ilícitos”, afirmou.
Campbell também destacou que o artigo 42 da Loman, que regula a aposentadoria compulsória, jamais foi revisto desde a redemocratização.
“É inaceitável que, mais de 40 anos depois do fim da ditadura, ainda tenhamos uma legislação pensada para proteger a toga em vez da sociedade”, completou.
Falhas de responsabilização e resistência corporativa
O corregedor lamentou a falta de iniciativa do Congresso Nacional e do próprio Poder Judiciário em promover reformas que limitem privilégios e fortaleçam a responsabilização. “A reforma administrativa passou e ninguém tocou nesse tema. É como se a aposentadoria remunerada fosse cláusula pétrea do corporativismo”, ironizou.
Campbell revelou que cerca de 125 juízes foram punidos com aposentadoria compulsória nos últimos anos, mas a maioria continua recebendo salários elevados, sem que tenham sido propostas ações de perda definitiva do cargo.
“O Regimento Interno do CNJ é claro: cabe às Advocacias-Gerais e ao Ministério Público mover essas ações. Mas isso raramente acontece. O resultado é a impunidade travestida de legalidade”, denunciou.
O CNJ e a criação do Núcleo de Acompanhamento de Execução de Penas
Como resposta a esse cenário, Campbell anunciou a criação, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do Núcleo de Acompanhamento de Execução de Penas, destinado a verificar o desfecho das sanções aplicadas a magistrados afastados. O objetivo é monitorar o cumprimento efetivo das punições e pressionar as instituições responsáveis a ajuizar as ações cabíveis para cassação definitiva de cargo e proventos.
“O CNJ não é mais apenas um órgão de controle administrativo. É indutor de políticas públicas e de moralidade. A sociedade quer ver punição real, não simbólica. Quer ver o juiz condenado fora da folha de pagamento”, enfatizou.
O ministro ressaltou que o CNJ, desde sua criação em 2004, tem papel fundamental na quebra da opacidade da Justiça brasileira.
“Antes do CNJ, cada tribunal era um feudo. Hoje, há um mínimo de controle. Mas ainda enfrentamos barreiras corporativas duríssimas”, afirmou.
“Juízes TQQ”: crítica ao corporativismo e à flexibilização da presença
Outro alvo das críticas de Campbell foram os chamados “juízes TQQ”, expressão usada internamente para designar magistrados que trabalham apenas às terças, quartas e quintas-feiras, muitas vezes em regime de home office. “Juiz tem que morar na comarca e atender a população. Justiça não é remoto, é presencial. Não dá para gerir um fórum de casa”, afirmou.
O corregedor classificou a prática como um “desrespeito ao serviço público” e lamentou decisões de tribunais que autorizaram juízes a residir fora das comarcas onde atuam. “Vetamos esse tipo de situação, mas há quem recorra e consiga respaldo. Isso mina a credibilidade da Justiça e fere o princípio da dedicação exclusiva”, criticou.
Campbell associou o fenômeno ao distanciamento social da magistratura em relação ao cidadão comum.
“O juiz precisa sentir o impacto real das suas decisões. O isolamento, o formalismo e o excesso de privilégios afastam o Judiciário da sociedade”, alertou.
Supersalários, desequilíbrios e “Bolsa Família institucional” no Ministério Público
O ministro ampliou sua crítica para o Ministério Público, do qual foi membro por 22 anos. Ele apontou que procuradores e promotores recebem, em muitos casos, salários acima dos limites constitucionais, distorcendo a hierarquia remuneratória do serviço público.
“Os promotores ganham mais que juízes, e os subprocuradores da República ganham mais que ministros. É uma aberração institucionalizada”, afirmou.
Campbell denunciou que as eleições internas para procuradores-gerais de Justiça são frequentemente marcadas por promessas de pagamentos atrasados e benefícios financeiros.
“É um verdadeiro ‘Bolsa Família’ institucional. Pagam-se dívidas antigas em troca de votos. Isso é corriqueiro, e todo mundo sabe”, declarou.
Segundo ele, o clientelismo financeiro se tornou um dos fatores mais corrosivos do Ministério Público, comprometendo sua independência e transformando-o em um bloco de poder político.
“A autonomia institucional não pode ser usada como escudo para autoproteção. Quando promotores ganham mais que ministros e ainda negociam vantagens, o sistema se deslegitima”, advertiu.
Um Judiciário distante da sociedade
Campbell também criticou o distanciamento simbólico e social da magistratura brasileira em relação à realidade da população. Ele apontou que a excessiva formalidade, os rituais internos e o isolamento das elites jurídicas criam uma cultura que desestimula a empatia e a responsabilidade pública.
“Há juízes que nunca pisaram em uma comunidade carente, mas decidem o destino de milhares de pessoas. É preciso humanizar a toga”, disse.
Para o ministro, o prestígio histórico da magistratura não pode servir como manto para abusos.
“Ser juiz é exercer um sacerdócio civil. Quando se transforma o poder em privilégio, o prestígio se converte em decadência”, afirmou, numa crítica implícita à cultura de autopreservação de setores do Judiciário.
Homenagens e legado institucional
Durante sua passagem por São Paulo, Campbell foi homenageado pelo Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) por sua atuação em defesa da transparência e da modernização do Judiciário. O presidente da entidade, Diogo Leonardo Machado de Melo, destacou que “a trajetória do ministro honra a magistratura e inspira todos os que acreditam na Justiça como pilar da democracia”.
O corregedor reafirmou que pretende intensificar o diálogo com corregedorias estaduais e federais, buscando alinhar práticas de fiscalização, acelerar correições e tornar públicos os resultados de investigações internas.
“A sociedade precisa saber o que se faz dentro dos tribunais. O segredo corporativo é o maior inimigo da confiança pública”, afirmou.
Desafios e implicações políticas da proposta
A proposta de Campbell, embora amplamente elogiada por especialistas em direito administrativo e transparência pública, enfrenta resistência entre associações de magistrados, como a AMB e a Ajufe, que argumentam que a cassação de proventos fere a independência judicial e poderia ser usada como forma de retaliação política.
Para analistas, no entanto, a manutenção da aposentadoria remunerada a juízes corruptos representa um paradoxo ético e uma anomalia republicana.
“O privilégio vitalício da toga, herdado de tempos autoritários, é uma das razões pelas quais o Brasil tem um dos sistemas de controle disciplinar mais brandos do mundo”, avaliou o jurista Carlos Ari Sundfeld, ouvido pela reportagem do Estadão.
Fraturas éticas do sistema
A entrevista do ministro Mauro Campbell revela uma das maiores fraturas éticas do sistema de Justiça brasileiro: o descompasso entre o discurso da moralidade e a prática corporativista que blinda magistrados e membros do Ministério Público. A aposentadoria compulsória com vencimentos é um símbolo da autossuficiência do Judiciário, uma instituição que, ao se pretender autônoma, frequentemente se exime da prestação de contas.
Ao denunciar juízes “TQQ”, supersalários e clientelismo interno, Campbell desafia uma cultura de autoproteção consolidada há décadas. Sua proposta toca em um tabu institucional: a revisão dos privilégios históricos que mantêm o sistema de Justiça como um dos menos permeáveis à crítica pública.
A resistência esperada é forte, mas inevitável. O desafio proposto pelo corregedor é de natureza civilizatória: substituir a impunidade institucionalizada pela meritocracia ética e pela transparência republicana. Enquanto isso não ocorrer, o Judiciário continuará a oscilar entre o ideal de independência e o vício da autocomplacência.
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