República Corrompida: AGU pede que ministro Gilmar Mendes reveja blindagem do STF e alerta para risco à soberania popular

Decisão monocrática do ministro do STF Gilmar Mendes que entrega à PGR o monopólio dos pedidos de impeachment contra ministros do STF é vista como violação do espírito da Constituição e subversão do princípio de que “todo poder emana do povo”

A Advocacia-Geral da União (AGU) pediu nesta quarta-feira (03/12/2025) ao ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), a reconsideração da decisão liminar que estabeleceu que somente o procurador-geral da República (PGR) pode apresentar pedidos de impeachment contra ministros da Corte. Na mesma decisão, o ministro suspendeu a expressão “a todo cidadão” do artigo 41 da Lei 1.079/1950, que autoriza qualquer brasileiro a denunciar magistrados por crime de responsabilidade perante o Senado, e ainda elevou o quórum de afastamento para dois terços dos senadores, equiparando-o ao exigido para o presidente da República.

Na prática, a medida desarma a sociedade, neutraliza o Senado como instância de controle político e concentra o gatilho do impeachment nas mãos de um único agente estatal, o chefe do Ministério Público Federal, hoje o procurador-geral da República, Paulo Gonet, indicado e reconduzido ao cargo com apoio direto de ministros do próprio STF, além do fato de ser ex-sócio de Gilmar Mendes no famoso Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

AGU fala em equilíbrio entre Poderes e alerta para deturpação das garantias constitucionais

Na manifestação enviada ao Supremo, o advogado-geral da União, Jorge Messias, sustenta que a possibilidade de abertura de processo de impeachment pelo Senado integra uma “relação de equilíbrio” entre os Poderes, permitindo que a República funcione com controles recíprocos e não como uma estrutura hierarquizada em torno de um núcleo de poder intocável.

A AGU argumenta que o sistema de garantias institucionais desenhado pela Constituição não existe para blindar autoridades, mas para assegurar a proteção de direitos fundamentais e a plena realização do princípio democrático. Ao retirar do cidadão a prerrogativa de denunciar e amarrar o Senado à iniciativa exclusiva da PGR, a decisão de Gilmar torce o sentido dessas garantias, transformando um mecanismo de controle da sociedade sobre as instituições em um escudo corporativo para o topo do Judiciário.

Senado reage: acusação de “usurpação” e defesa da competência privativa do Legislativo

O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), reagiu de forma contundente. Em nota e em discurso, classificou a decisão de Gilmar como motivo de “preocupação” e insinuou “usurpação de competências” do Legislativo, ao lembrar que uma lei votada pela Câmara, aprovada pelo Senado e sancionada pelo presidente da República foi parcialmente desfigurada por ato monocrático de um único ministro.

Alcolumbre sustentou que mudanças dessa natureza deveriam ser deliberadas colegiadamente pelo STF ou realizadas por meio de lei ou emenda constitucional, jamais por canetada isolada. O senador evocou a competência privativa do Senado para processar e julgar ministros do Supremo por crimes de responsabilidade, alertando para o risco de se subordinar essa atribuição à vontade da PGR, órgão técnico, nomeado e não eleito, que passa a se tornar porteiro exclusivo da responsabilização de ministros.

Paralelamente, lideranças da Casa intensificaram a discussão da PEC 08/2021, que busca restringir decisões monocráticas, e articulam uma nova proposta de emenda para reafirmar em nível constitucional a legitimidade de qualquer cidadão de apresentar pedidos de impeachment, recuperando o espírito original da Lei 1.079/1950.

Da República dos cidadãos à República dos burocratas

Ao suspender a expressão “a todo cidadão” e transferir a iniciativa exclusiva de denúncias à PGR, a decisão de Gilmar Mendes desloca o eixo da soberania. O que antes era um instrumento de expressão direta do povo — ainda que filtrado pelo juízo político do Senado — passa a depender da vontade de um único órgão técnico, integrado por membros não eleitos.

A Constituição de 1988 consagra, logo em seu artigo 1º, que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. Ao longo de décadas, a possibilidade de qualquer cidadão apresentar denúncia por crime de responsabilidade contra ministros do STF funcionou como desdobramento concreto desse princípio, ainda que a imensa maioria dos pedidos fosse arquivada pelo Senado. A longevidade desse mecanismo, sem contestação séria da sua legitimidade, é vista por constitucionalistas como sinal de sua compatibilidade com a ordem constitucional.

A nova configuração rompe com essa tradição e substitui um canal popular de controle por um filtro burocrático, concentrado em um cargo que, além de não eletivo, é politicamente negociado no interior da própria elite estatal. A República deixa de ser, nesse ponto, comunidade de cidadãos para se aproximar de um modelo em que corporações e cúpulas de Poder decidem entre si o que pode ou não ser questionado.

Blindagem institucional e corrupção do princípio de responsabilidade

O impeachment é, em essência, um instrumento político-jurídico concebido para permitir que autoridades de cúpula sejam responsabilizadas quando traem o mandato, violam a Constituição ou deformam suas funções de forma grave. Ao limitar severamente a possibilidade de sua deflagração, o STF não apenas altera um procedimento; corrompe o próprio princípio da responsabilidade, transformando-o em figura retórica.

A decisão de Gilmar é apresentada como defesa da independência judicial contra “impeachment abusivo” e retaliações políticas. Contudo, o efeito concreto da liminar é a construção de uma barreira quase intransponível:

  • o cidadão perde sua legitimidade direta;
  • o Senado passa a depender de um único órgão para iniciar o processo;
  • o quórum é elevado a um patamar que beira a impossibilidade prática.

Desse modo, o mecanismo de impeachment contra ministros do STF deixa de ser instrumento extraordinário de responsabilização e passa a funcionar como garantia de intangibilidade da cúpula do Judiciário, o que afronta a lógica republicana que exige que todos os Poderes sejam, no limite, responsabilizáveis.

PGR como “porteiro” do sistema e o risco da politização interna

Ao entregar à PGR o monopólio da iniciativa, a decisão confere a um único cargo — provido politicamente — o papel de árbitro supremo sobre a possibilidade de responsabilização de ministros do STF. Em tese, a intenção é assegurar um filtro técnico contra pedidos oportunistas. Na prática, abre-se espaço para um sistema de vetos cruzados entre cúpulas estatais, em que alianças, vínculos pessoais e compromissos tácitos podem pesar mais do que o interesse público.

A situação se torna ainda mais sensível porque o atual procurador-geral, Paulo Gonet, foi sócio de Gilmar Mendes em instituição de ensino jurídico e chegou ao cargo com apoio explícito de ministros do próprio Supremo, inclusive de Alexandre de Moraes.

Críticos enxergam aí o esboço de um círculo fechado de poder, no qual quem julga, quem interpreta a Constituição e quem controla a chave da responsabilização se movimentam dentro de um mesmo ambiente restrito, distante do cidadão comum e das formas tradicionais de controle democrático.

33 pedidos paralisados e uma mensagem clara: “não toquem na Corte”

A decisão de Gilmar Mendes travou a tramitação de 33 pedidos de impeachment protocolados em 2025, muitos deles dirigidos contra o ministro Alexandre de Moraes, e também beneficia o próprio Gilmar, alvo de múltiplas denúncias ao longo dos anos.

A sinalização política é inequívoca: o Supremo não será colocado no banco dos réus, seja por cidadãos, seja por pressões do Senado. A mensagem que chega à sociedade é a de que a cúpula do Judiciário opera acima das tensões normais da vida política, blindada por arranjos jurídicos produzidos por ela mesma, em processos muitas vezes distantes do debate público amplo.

Especialistas veem ruptura com a tradição republicana e subversão da soberania popular

Constitucionalistas ouvidos pela imprensa dividem-se em nuances, mas convergem em um ponto: a Lei 1.079/1950 precisava ser atualizada; porém, a forma escolhida pelo STF agrava a desconfiança social e tensiona a separação de Poderes.

Alguns fatores são destacados:

  • Ruptura com a tradição democrática: por mais que pedidos fossem arquivados, a previsão de que “qualquer cidadão” pode denunciar ministros materializava o princípio de que o povo não é mero espectador.
  • Substituição do povo por um órgão burocrático: a substituição do cidadão pela PGR rompe o vínculo direto entre soberania popular e responsabilização de autoridades.
  • Deslocamento da arena de controle: o foco deixa de ser o Parlamento, espaço de representação política, e migra para um órgão técnico cujos critérios de atuação não são objeto de escrutínio eleitoral.

Do ponto de vista de uma leitura mais tradicional da República — enraizada na ideia de que nenhum Poder pode ser juiz exclusivo de seus próprios excessos — a decisão representa um ponto de inflexão: o Judiciário passa a definir, em última análise, se seus membros podem ser questionados, por quem e em que condições.

Crise entre Poderes e aprofundamento da desordem institucional

A reação do Senado mostra que a crise não se limita a uma controvérsia jurídica abstrata. O embate se soma a outros movimentos recentes, como a resistência da Câmara em aplicar decisões do STF sobre perda de mandato de parlamentares, e às pressões do Congresso sobre o Executivo em matéria orçamentária.

Nesse contexto, a decisão de Gilmar é lida por analistas como mais um passo na escalada de desconfiança recíproca entre STF, Congresso e Executivo. Em vez de restaurar a ordem institucional, o arranjo adotado pela Corte aprofundaria uma espécie de “República corporativa”, na qual cada Poder busca maximizar sua autoproteção, enquanto o cidadão comum assiste de fora, sem instrumentos efetivos para influenciar a responsabilização das autoridades.

Quando a blindagem institucional corrompe a República

A medida de Gilmar Mendes vai além de um debate técnico sobre a interpretação da Lei do Impeachment. Corrói silenciosamente a lógica republicana, ao inverter a direção do poder: da sociedade para o Estado, do cidadão para o burocrata, do eleito para o não eleito.

Ao retirar do cidadão a legitimidade de denunciar e condicionar o Senado à anuência da PGR, a decisão subordina a soberania popular a uma hierarquia de carreiras de Estado. Em vez de a República controlar seus funcionários por meio de mecanismos de responsabilidade política, são as corporações do próprio Estado que passam a controlar, filtrar e limitar o alcance dessa responsabilização.

Sob o pretexto de combater abusos, institui-se uma excepcionalidade permanente. Ministros do STF passam a ocupar uma zona de proteção reforçada, em que o custo político e institucional de qualquer tentativa de responsabilização se torna quase intransponível. Trata-se, na prática, de corromper o princípio de que ninguém está acima da lei, substituindo-o por uma fórmula de autopreservação institucional.

Não se trata de defender linchamentos jurídicos ou pedidos de impeachment frívolos. Mas sim de reconhecer que uma República saudável precisa manter abertos os canais pelos quais o povo, diretamente ou por meio de seus representantes, pode acionar mecanismos extremos de responsabilização. Ao fechar esses canais, o STF não protege apenas a independência judicial; protege a si mesmo, contra o próprio povo em nome de quem diz julgar.


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