Mario Vargas Llosa, um dos principais nomes da literatura latino-americana e referência mundial do pensamento liberal, faleceu aos 89 anos, em Lima, capital do Peru. A morte foi confirmada por seu filho, Álvaro Vargas Llosa, por meio de publicação nas redes sociais. Laureado com o Prêmio Nobel de Literatura, Vargas Llosa construiu uma carreira marcada por obras que retrataram as contradições das sociedades latino-americanas, bem como por uma trajetória política controversa.
Carreira literária marcada por crítica social e experimentação formal
Vargas Llosa ganhou notoriedade internacional com “A Cidade e os Cachorros” (1963), romance inspirado em sua experiência no colégio militar Leôncio Prado. A obra abordou autoritarismo, desigualdade e a falta de honestidade política, elementos que permearam grande parte de sua produção.
“O romance tinha muita relação com os problemas de uma sociedade latino-americana”, declarou o escritor, ao relembrar o contexto do livro.
“Havia ditaduras militares, falta de honestidade dos políticos, grandes diferenças econômicas entre uma classe humilde e a pequena minoria de ricos”.
O autor destacou-se pelo uso de múltiplos narradores, fragmentação temporal e uma técnica que denominou “romance total”, visível em títulos como “Conversa no Catedral” (1969) e “A Guerra do Fim do Mundo” (1981), este último ambientado em Canudos, na Bahia, inspirado em Euclides da Cunha.
Nos anos 1970, o autor incorporou humor à sua obra com títulos como “Pantaleão e as Visitadoras” (1973), demonstrando versatilidade narrativa. Em entrevistas, reconheceu a influência de autores como Gustave Flaubert e William Faulkner, exaltando o rigor formal e a multiplicidade de pontos de vista como essenciais para representar a complexidade das sociedades latino-americanas.
“Flaubert era um reacionário, mas sua obra desmentia isso. Quando escreveu Madame Bovary, suas ideias foram derrotadas pela realidade viva que registrou”, disse em entrevista de 1965, relembrada pela Folha de S.Paulo.
Da esquerda à direita: trajetória política e influência liberal
Candidato à presidência do Peru em 1990 pela coalizão liberal FREDEMO, Vargas Llosa foi derrotado por Alberto Fujimori, a quem posteriormente acusou de instaurar uma ditadura. O escritor atribuiu sua mudança ideológica à vivência no Reino Unido, nos anos de Margaret Thatcher, quando passou a se identificar com o liberalismo clássico, influenciado por pensadores como Karl Popper.
“Eu propunha uma democracia, Fujimori exerceu uma ditadura.”, afirmou.
Na obra “O Chamado da Tribo” (2018), defendeu que o liberalismo transcende o livre mercado, incluindo liberdade de expressão, pluralismo político, direitos humanos e responsabilidade social, posicionando-se contra elites empresariais que sonegavam impostos.
Críticas a Lula e ao populismo latino-americano
Em entrevista concedida à Folha de S.Paulo, em 2022, Vargas Llosa declarou: “Lula, jamais”, ao ser questionado sobre as eleições brasileiras. Na ocasião, afirmou que o ex-presidente brasileiro causou “estragos no Peru”, referindo-se à delação da Odebrecht que envolveu políticos peruanos e citou Lula, embora sem acusações formais contra ele no país vizinho.
“Lula foi um homem que corrompeu profundamente. Podemos dizer que os dirigentes peruanos se deixaram corromper, mas Lula cumpriu uma função muito negativa no Peru”.
O escritor também manifestou desconforto em relação ao então presidente Jair Bolsonaro, classificando-o como “palhaço” e responsabilizando-o por “catástrofe” na condução da pandemia. Apesar disso, reiterou que não votaria em Lula, apontando-o como símbolo de corrupção sistêmica na região.
“Ele [Lula] está muito associado à corrupção”.
Liberalismo social e crítica à nova direita
Apesar de sua adesão ao liberalismo, Vargas Llosa criticava o que chamava de visão “estreita” da nova direita. “Tomar o liberalismo apenas como crescimento econômico é um erro. As grandes diferenças entre a classe empresarial e a classe trabalhadora precisam ser enfrentadas”, declarou. Essa perspectiva se manifestou no romance “Tempos Ásperos” (2019), em que uma multinacional sonegadora de impostos instiga um golpe de Estado, com apoio da CIA, contra um governo democrático na Guatemala.
Em “O Chamado da Tribo” (2018), Vargas Llosa escreveu:
“Capitalismo verdadeiro exige que empresários paguem impostos. Isso é o que permite à sociedade prosperar”.
O paradoxo entre arte e ideologia
Apesar de sua militância liberal, Vargas Llosa manteve uma abordagem crítica às desigualdades sociais em seus romances. Reconheceu que parte da direita latino-americana negligencia as demandas sociais, contribuindo para a ascensão de movimentos populares. Em sua visão, o liberalismo deve incorporar medidas distributivas que permitam a ascensão social e combatam a concentração de renda.
Ao comentar sobre a eleição de José Antonio Kast no Chile, Keiko Fujimori no Peru e Jair Bolsonaro no Brasil, Vargas Llosa foi duramente criticado por setores progressistas, mas manteve sua postura liberal, reiterando a necessidade de alternância democrática e liberdade institucional.
“A Guerra do Fim do Mundo” e o Brasil
Um dos romances mais reconhecidos de sua carreira, “A Guerra do Fim do Mundo” (1981), narra a epopeia de Canudos, na Bahia, inspirado em “Os Sertões”, de Euclides da Cunha.
“Devo esse romance a Euclides, cujo livro me deslumbrou. Foi um dos romances que mais me exigiu”, afirmou.
A obra marca um ponto de inflexão em sua literatura, deslocando-se do Peru para o contexto latino-americano, com ênfase no fanatismo, na repressão militar e na luta por autonomia popular.
Últimos projetos e legado
Em seus últimos anos, o autor trabalhava em um romance sobre música peruana, com um protagonista que via a arte como instrumento de coesão nacional. Ao longo de mais de seis décadas, produziu uma obra vasta, que influenciou escritores de diferentes gerações. Vargas Llosa deixa um legado literário inquestionável e uma trajetória pública marcada pela defesa de princípios liberais, ainda que frequentemente controversos.
*A reportagem é com base em entrevista concedida por Mario Vargas Llosa ao jornal Folha de S.Paulo, em 2022.
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